Revolta popular faz presidente do Quênia retirar lei de arrocho ditada pelo FMI
A lei de aumento de impostos, que implicava na elevação dos preços desde o pão (16%) até os combustíveis (50%), ditada pelo FMI, foi revogada pelo presidente do Quênia, William Ruto na quarta-feira (26) após uma revolta popular que incluiu a tomada do parlamento por manifestantes na capital Nairobi e se estendeu ao país inteiro.
Ruto assumiu que tomou a decisão de recuo “porque os quenianos estavam insatisfeitos” com o projeto de lei. Depois de uma repressão brutal em que a polícia matou a tiros 14 manifestantes e feriu dezenas, ele asseverou estar disposto a “dialogar”.
Ruto ainda tentou alegar que o arrocho proposto, e que todos sabem que foi imposição do FMI para “reduzir o déficit”, seria supostamente para melhorar a saúde, a educação e para a agricultura e compra de fertilizantes.
Os protestos contra os novos impostos no Quénia começaram em 18 de Junho e espalharam-se por todo o país, incluindo, além da capital Nairobi, as cidades de Kisumu, Nyeri, Nakuru, Eldoret, Kilifi, Lodwar, Kakamega, Kisii, Meru e Mombaça.
A entrada de manifestantes no parlamento em Nairobi na terça-feira (25) foi o ponto culminante de uma semana de protestos contra o projeto de lei orçamentária do governo Ruto, ditado pelo FMI, e que, além de provocar o aumento dos preços do pão e combustíveis, elevava também os do óleo de cozinha e até as taxas sobre transações via internet. As medidas foram aprovadas por pequena margem de 195 a 106 votos em terceira votação. O Quênia, com 52 milhões de habitantes, é o principal país do leste da África.
A repressão que matou 14 manifestantes, também deixou como consequência uma ampla quantidade de feridos. Só no Hospital Nacional Kenyatta, no centro de Nairobi, mais de 200 pessoas foram atendidas com ferimentos de bala.
Com o pagamento só de juros no Quênia correspondendo a 37% de tudo que é arrecadado, o FMI exigiu a “redução dos déficits” – nas costas da população – como condição para conceder financiamento adicional. Em abril de 2021, o Quênia firmou um acordo de US$ 3,6 bilhões com o FMI em troca de uma austeridade selvagem.
O Fundo apoiou a Lei das Finanças de Ruto, afirmando que “as autoridades deram passos decisivos para a consolidação orçamental”.
Por volta de meio dia da terça, várias centenas de pessoas romperam as barreiras policiais, apesar do gás lacrimogêneo e dos canhões de água e atravessaram os portões do Parlamento localizado no distrito comercial e administrativo da capital, segundo imagens da televisão queniana. Os protestos se estendem ao país inteiro, com os manifestantes tendo convocado uma paralisação nacional.
Pela iníqua lei de finanças de Ruto, a carga fiscal aumentaria em US$ 2,7 bilhões de dólares, para pagar credores e rentistas e supostamente “aliviar a carga da dívida”. De acordo com uma pesquisa recente realizada pela Infotrak, 87% dos quenianos são contrários ao projeto.
Além da capital, os protestos atingiram Kisumu, a terceira maior cidade do país e um reduto da oposição; Nanyuki, onde está localizada a maior base militar britânica na África Oriental; e Mombaça, principal porto da África Oriental.
Os manifestantes exijam a renúncia de Ruto – aliás, eleito há menos de dois anos prometendo defender “os mais pobres” – e, após o massacre no parlamento, também o dos parlamentares.
Nascido nas redes sociais a 13 de junho, o movimento “Ocupar o Parlamento” opõe-se ao projeto de orçamento 2024-2025, que prevê a introdução de impostos de IVA que além dos produtos já citados traria o imposto anual de 2,5% sobre veículos particulares, um imposto especial de consumo de 25% sobre o óleo de cozinha, uma taxa ecológica sobre produtos considerados prejudiciais ao meio ambiente – incluindo fraldas, baterias, pneus de borracha, aparelhos de televisão e smartphones – e um imposto especial sobre motocicletas montadas localmente em um país com três milhões de mototáxis (“boda-boda”). Foi o que levou os manifestantes da declararem uma insuportável repercussão sobre o custo de vida.
Isso em um país em que, em maio, a inflação já era de 5,1%, enquanto o aumento dos preços dos alimentos e dos combustíveis ia respectivamente a 6,2% e 7,8%.
Na semana passada, dois manifestantes já tinham sido mortos, além de dezenas de feridos e centenas de prisões, como denunciado por entidades de direitos humanos. A Anistia Internacional e Comissão de Direitos Humanos do Quênia (KHRC, na sigla em inglês) acusaram as autoridades de realizarem raptos de ativistas.
Anteriormente, o governo de Ruto havia imposto a duplicação do IVA sobre os combustíveis de 8% para 16%; aumento de impostos sobre alimentação, transferências de dinheiro móvel, criação de conteúdo digital e salários; aumento das contribuições para a seguridade social; e corte de empregos no setor público, além de cobrar uma taxa dos trabalhadores com emprego formal a pretexto de financiar moradias “acessíveis”.
Antes do recuo, Ruto chegou a chamar o Exército, censurou a internet e, em discurso televisionado, descreveu os manifestantes como “traidores” e “criminosos perigosos” e “ameaça existencial à nossa república”.
“GRANDE ALIADO EXTRA-OTAN”
Em maio, Ruto esteve em Washington em visita de Estado, quando o governo Biden nomeou o Quênia um grande aliado extra-Otan, o primeiro na África subsaariana. A viagem também serviu para ultimar a proposta norte-americana de envio de uma força policial do Quênia para intervir no conturbado Haiti e evitar a saída de refugiados para os EUA.
O Quênia também aderiu à Operação Prosperity Guardian, liderada pelos EUA, a operação militar contra as milícias houthis no Iêmen que tentam interromper o fornecimento aos militares israelenses, em solidariedade aos palestinos.
A base de Camp Simba, na Baía de Manda, que serve de sede para drones e vigilância dos EUA no Oceano Índico, no Chifre da África e no Mar Vermelho, tem desempenhado um papel fundamental na guerra não declarada contra a insurgência Al-Shabab na Somália, onde milhares de pessoas morreram em ataques de drones dos EUA e para onde o Quênia continua a enviar milhares de soldados como representante dos EUA desde 2011.
“OLHAR PARA O LESTE”
Em relação à China, o Quênia, sob a política de “Olhar para o Leste”, das presidências de Mwai Kibaki (2002-2013) e Uhuru Kenyatta (2013-2022), o comércio bilateral cresceu mais de trinta vezes, de US$ 106 milhões em 2000 para US$ 6,5 bilhões em 2022.
Em outubro passado, Ruto, apesar de sua retórica antichinesa durante a campanha a presidente de 2022, foi a Pequim em uma visita de três dias e seu reuniu com o presidente Xi Jinping, onde fechou novos acordos ampliando os laços.
A China é o maior parceiro comercial do Quênia, com mais de 16% do volume total de comércio de mercadorias, seguida pela União Europeia, Índia e Emirados Árabes Unidos. Os EUA estão apenas em quinto lugar.
A China emergiu como o país de origem preferido para produtos eletrônicos, têxteis, cosméticos, acessórios para veículos e máquinas. É também responsável por grandes projetos de infraestrutura, incluindo a Super-rodovia Nairobi-Thika, facilitando o transporte de matérias-primas e produtos acabados entre a capital e a segunda cidade mais industrializada do país; a ferrovia Nairobi-Mombaça que liga Nairobi à costa; e projetos como o Terminal de Petróleo Kipevu no Porto de Mombaça, o Porto de Lamu, a Ponte Flutuante de Liwatoni e a Barragem Thwake.
Fonte: Papiro