Brasil teve mais de 24 mil homicídios ocultos entre 2019 e 2022
Das muitas constatações importantes trazidas pelo Atlas da Violência 2024, ao menos duas, no âmbito dos homicídios em geral, merecem atenção. A primeira é que o relatório mostra que embora alto, o índice desse tipo de crime no Brasil pode ser ainda maior devido ao elevado número de assassinatos sem registro. A segunda é que a política armamentista de Jair Bolsonaro pode ter interrompido a trajetória de queda que vinha sendo observada a partir de 2017.
O Atlas — produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e lançado nesta semana —, aponta que o país registrou 46.409 homicídios em 2022, uma taxa de 21,7 por 100 mil habitantes. Mas, segundo o levantamento, esse número pode estar bastante subestimado considerando que entre as milhares de mortes violentas por causa indeterminada (MVCI) há homicídios, classificados como ocultos. Somando os casos oficialmente registrados e aqueles ocultos, a estimativa é de 52.391 homicídios somente naquele ano.
Apenas entre 2019 e 2022, foram 24.102 homicídios ocultos no Brasil, o que equivale à queda de 160 boeings lotados, sem sobreviventes, conforme apontado pelos pesquisadores.
No período de 2012 a 2022, o Brasil teve 131.562 mortes violentas cuja causa básica do óbito (acidente, suicídio ou homicídio) não foi identificada pelo Estado. Considerando os cálculos feitos pelos pesquisadores para estimar os casos ocultos, as estatísticas oficiais saltariam de 609.697 para 661.423 homicídios nesses 11 anos.
Como isso acontece
O coordenador do Atlas, Daniel Cerqueira, do Ipea, explica alguns fatores que podem estar na origem desse alto grau de homicídios ocultos.
O primeiro ponto é que ao fazer o laudo de uma pessoa morta de causa violenta, o médico legista muitas vezes não consegue aferir qual foi a motivação que gerou o primeiro fato mórbido. “Ou seja, muitas vezes o médico legista pode até ver uma pessoa com perfuração por arma de fogo, mas não sabe dizer se aquilo ali foi resultado de um suicídio, de um acidente ou de um homicídio”, diz.
A declaração de óbito com esse campo em branco segue para a Secretaria de Saúde, que buscará novas informações junto à polícia para entender o que aconteceu. “Quando não há compartilhamento de informações entre as polícias e a Secretaria de Saúde, cresce o número de mortes violentas com a causa indeterminada”, argumenta.
O pesquisador acrescenta um segundo ponto. Anualmente, essa base de dados é enviada pelas secretarias estaduais ao Ministério da Saúde, que avalia a qualidade das informações. Quando há muitas mortes violentas indeterminadas, o MS pede mais informações à secretaria.
Cerqueira avalia que “houve um verdadeiro desmonte no Ministério da Saúde, sobretudo a partir de 2019, quando vários bons técnicos saíram do Ministério da Saúde. E parece que aqueles estados em que já havia uma baixa qualidade nos dados e que sempre era necessário o Ministério da Saúde correr atrás de melhorar a informação, exatamente nesses estados é que, como não houve um trabalho profícuo do MS, nesse período, os dados terminaram piorando”.
Conforme ele aponta, esses estados são São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro, sendo que São Paulo, destaca, “é o caso mais escandaloso: 40% dos homicídios ocultos no Brasil ocorrem no estado de São Paulo, que é o mais rico da federação”.
Trajetória dos homicídios
De maneira geral, o Atlas da Violência aponta que “após relativa estabilidade na taxa de homicídios registrados no Brasil entre 2012 e 2015, observou-se crescimento nos índices de letalidade nos anos de 2016 e 2017, seguido por forte redução até 2019, quando as taxas permaneceram estáveis até 2022”.
Para explicar essas oscilações, é preciso analisar a dinâmica do crime organizado a partir dos anos 2000, quando há uma expansão das facções. “A partir da década de 2010, a disputa mais aguerrida por territórios e pelo controle do corredor internacional de narcotráfico, no Norte e Nordeste, entre as duas maiores facções do país e seus aliados regionais fez estourar uma guerra intensa nos anos de 2016 e 2017”, afirma o documento.
Por outro lado, houve fatores que influenciaram na diminuição dos homicídios, também a partir dos anos 2000. Um deles foi a mudança do perfil demográfico brasileiro, que passou a ter uma população mais envelhecida. E como boa parte dos assassinatos ocorrer nas faixas mais jovens, esse envelhecimento contribuiu para reduzir as estatísticas.
Soma-se a isso o impacto positivo do maior controle das armas de fogo advindo do Estatuto do Desarmamento, ação do primeiro governo Lula em 2003. Estudo feito por Cerqueira estima que o estatuto pode ter salvado até 14 mil vidas entre 2004 e 2007, o equivalente a cerca de 7,4% dos homicídios no período. Por fim, o terceiro elemento diz respeito a políticas de segurança pública qualificadoras implantadas em alguns estados e municípios.
A partir de 2019, no entanto, esse cenário de queda dos homicídios começa a mudar. “Uma possível explicação para essa estagnação no processo de redução da violência letal no Brasil a partir de 2020 diz respeito à legislação armamentista do governo Bolsonaro, que pode ter influenciado no sentido de aumentar os homicídios, anulando a maré a favor da redução de mortes”, pondera o Atlas.
O levantamento continua, lembrando que outro estudo do FBSP de 2023 mostrou evidências de que “se não houvesse tal legislação, a redução dos homicídios teria sido ainda maior do que a observada entre 2019 e 2021, sendo que pelo menos 6.379 vidas teriam sido poupadas. Os autores estimaram que o aumento de 1% na difusão de armas de fogo gera aumento nas taxas de homicídios e de latrocínios de 1,2%”. Vale destacar que em 2022, mais de 72% dos homicídios foram cometidos com arma de fogo.
Por fim, o Atlas aponta que “ao contrário do propalado, não houve qualquer sinal de melhoria na conjuntura da segurança pública no Brasil no período Bolsonaro. A tendência de queda das Mortes Violentas Intencionais se exauriu, no rastro de uma legislação armamentista negacionista. Não houve qualquer avanço institucional para a implantação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). E, ainda, influenciado por incentivos simbólicos e pelos discursos e ações de muitas autoridades, velhos desafios voltaram à tona, como a questão da letalidade policial”.
Jovens alvos
No contexto do alto grau de violência vivida pelo Brasil, a juventude continua sendo o principal alvo dos homicídios, mesmo tendo havido redução de 33% entre 2017 e 2022.
Segundo informa o Atlas, de cada cem jovens entre 15 e 29 anos que morreram por qualquer causa em 2022, 34 foram vítimas de homicídio. Dos 46.409 homicídios registrados, 49,2% vitimaram jovens entre 15 e 29 anos.
“Foram 22.864 jovens que tiveram suas vidas ceifadas prematuramente, uma média de 62 jovens assassinados por dia no país”, salienta o estudo.
Considerando o período de 2012 a 2022, foram 321.466 jovens vítimas da violência letal no Brasil. A grande maioria dessas vítimas continua sendo de homens: somente em 2022, foram 46,6 homicídios para cem mil jovens no Brasil, 86,7 em relação aos homens jovens.
Uma análise importante feita pelo Atlas para mostrar a gravidade deste quadro diz respeito aos anos que deixaram de ser vividos por esses jovens assassinados. Para tanto, é usado o indicador de Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP), que contabiliza a quantidade de anos de vida perdidos devido a mortes prematuras, em comparação com a expectativa de vida.
Considerando esse método, “os 321.466 homicídios de jovens ocorridos entre 2012 e 2022 resultaram em uma perda de 15.220.914 anos potenciais de vida. Os acidentes, como a segunda causa mais frequente de mortes entre os jovens, foram responsáveis por 7.590.042 anos potenciais de vida perdidos”, analisa o Atlas. As armas de fogo foram as principais responsáveis por este índice, respondendo por 81% dos APVPs.
Faixas etárias mais jovens também têm sido alvo permanente da violência letal. Entre 2012 e 2022, houve 2.153 homicídios de infantes (0 a 4 anos), 7 mil de crianças (5 a 14 anos) e 94.970 homicídios de adolescentes (15 a 19 anos). O Atlas aponta, ainda, que nesse período de tempo, quase 84% dos adolescentes (15 a 19 anos) e 70% das crianças (5 a 14 anos) foram vitimizados por arma de fogo.
“São milhares de crianças e adolescentes que não tiveram a chance de começar a construir um caminho profissional ou concluir – ou sequer iniciar – sua vida escolar”, alerta o estudo.