Reconstrução do RS depende da mão do Estado e do diálogo com a população
Passado pouco mais de um mês do início das enchentes no Rio Grande do Sul, o desafio que se coloca é o da reconstrução. A catástrofe deixou claro que já não é mais possível ignorar os efeitos do aquecimento global sobre a dinâmica do clima, da mesma forma como mostrou ser imprescindível garantir segurança e dignidade às populações e preservação ambiental como forma de proteção à vida em toda sua forma.
Nesse cenário, o Estado tem papel central, contradizendo o que a lógica neoliberal tem imposto ao longo de décadas. Deixar a história fluir pelas “mãos invisíveis do mercado”, está mais do que provado, é deixar a vida à mercê da lógica do lucro.
“A retomada da confiança na ação do Estado é importante, porque precisamos de políticas públicas que orientem as formas como os espaços são construídos e transformados. E também é preciso saber em que medida essas transformações afetam as vidas das pessoas que moram nas cidades e no meio rural”, diz, ao Portal Vermelho, a professora do Departamento de Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Heleniza Campos.
Ela explica que há investimentos que “precisam ser feitos tanto em infraestrutura, drenagem e limpeza urbana como, também, discussões sobre como e em que intensidade pode-se recompor as áreas que foram inundadas”.
Ainda há muito cálculo a ser feito para saber quanto custará a reconstrução do estado. Mas, segundo estimativa da Federação de Entidades Empresariais do RS (Federasul), a reconstituição da infraestrutura pode custar entre R$ 110 bilhões e R$ 176 bilhões.
O Estado mínimo não funciona
Se, por um lado, ao longo do desastre vivido pelos gaúchos, meios de comunicação tradicionais e a extrema-direita têm se empenhado em depreciar o trabalho dos governos — sobretudo o federal — e vender a falsa ideia de que o povo, sozinho, salvou o próprio povo, por outro é forçoso reconhecer que nem o socorro, nem a reconstrução seria possível sem o empenho estatal, como atesta o montante estimado pela Federasul.
“A gente está num momento, em nível global, de ataque ao Estado. Mas a verdade é que situações como essa que estamos vivendo mostram que o Estado mínimo não funciona”, argumenta Mário Leal Lahorgue, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e também pesquisador do Observatório das Metrópoles.
Quanto à austeridade fiscal, que tanto engessa a ação do Estado, Lahorgue destaca: “este é um belíssimo momento para a gente rediscutir todas as restrições em cima do Estado. Porque se você o restringe, não vai ter como reconstruir nada”.
Neste sentido, uma série de iniciativas já foram anunciadas pelo governo federal. Segundo o site Brasil Participativo, que concentra informações sobre os recursos aportados no RS, até o momento o investimento total foi de R$ 85,7 bilhões.
Arcabouço legal
Outro ponto importante para ser levado em conta nesse momento, segundo os dois especialistas, é a forma como deve se dar esse processo de reestruturação do RS. “Às vezes, a gente acaba atropelando as coisas por causa das circunstâncias e não se dá conta de que, na verdade, a gente já tem todo um arcabouço legal que, se fosse seguido, mitigaria boa parte desses efeitos que aconteceram agora”, diz o professor.
Embora reconheça que algumas situações possam merecer novas normas, ele defende que, muitas vezes, o respeito ao Estatuto das Cidades e a determinados planos diretores deixariam muitos municípios menos vulneráveis. “Se todos os governos fizessem um planejamento urbano decente e seguissem as diretrizes que constituem o Estatuto das Cidades, se tudo isso fosse cumprido, as cidades já seriam bem mais resilientes e mais resistentes”, afirma.
Como exemplo, ele cita a capital gaúcha. “Na questão da moradia, consta tanto no Estatuto quanto no Plano Diretor de Porto Alegre que a habitação de interesse social tem que ser feita e precisa ser bem localizada — não pode simplesmente jogar as pessoas para a periferia”. E ressalta: “é bom lembrar que normalmente os primeiros atingidos por qualquer evento climático são os mais pobres e isso ocorre exatamente porque eles acabaram tendo de viver nos piores lugares, lugares esses onde, se o Plano Diretor fosse seguido, eles não estariam”.
Ao longo de décadas, populações desassistidas pelo poder público ocuparam áreas de risco e construíram grandes comunidades que acabaram sendo reconhecidas e recebendo infraestrutura pública quando, na verdade, deveriam, desde o início, ter tido acesso a locais seguros. “Existem áreas que não se deve permitir moradia, porque o resultado é catastrófico”, enfatiza Lahorgue. Muitos dos locais afetados pelas chuvas no estado se desenvolveram em áreas próximas a rios, aterradas ou em encostas, por exemplo, regiões mais vulneráveis a eventos extremos.
Outro ponto que tem gerado polêmica são as “cidades temporárias”, estruturas propostas pelo governo do estado para abrigar as pessoas que perderam suas casas enquanto as novas residências são reconstruídas. Segundo a Defesa Civil, hoje há mais de 579 mil pessoas desalojadas e 37.154 desabrigadas no estado, 9,8 mil em Porto Alegre.
Conforme anunciado, serão cinco unidades — três em Porto Alegre e duas em Canoas. Um termo de cooperação entre o governador Eduardo Leite (PSDB) e o Sistema Fecomércio-RS foi fechado na última sexta-feira (31). Pelo acordo, a Federação financiará a contratação da empresa que vai fornecer as estruturas temporárias. A gestão dos espaços ficará sob responsabilidade da Organização Internacional para as Migrações (OIM), que integra a Organização das Nações Unidas (ONU).
Na avaliação do professor, não cabe atacar a iniciativa simplesmente por ser provisória — “desde que seja realmente provisória”, enfatiza. Ele aponta que “um dos grandes medos dos movimentos sociais, principalmente os de moradia, é que muitas vezes soluções provisórias se tornam permanentes”.
Para lidar com os desafios da reconstrução, além de garantir o papel do Estado e consultar instituições públicas, pesquisadores e cientistas, também é fundamental estar atento ao que a população tem a dizer. “É preciso criar canais de diálogo com as comunidades de baixa renda e com a população em geral que foi afetada e localizar espaços que sejam dignos para habitação temporária, como já se tem falado a algumas semanas”, aponta Heleniza.
Além disso, acrescenta que ao mesmo tempo “é importante lembrar que os bairros afetados concentram empregos, estabelecimentos comerciais, serviços, gerando um conjunto de problemas decorrentes das enchentes mesmo para pessoas que não foram diretamente atingidas pelas inundações. A situação do emprego compõe, junto com a habitação e ao acesso aos serviços básicos, o tripé da cidadania”.