Onipresente, negacionismo contamina desde as redes sociais até a gestão pública
Há um mês, o Brasil vê, atônito, o Rio Grande do Sul sendo tomado por fortes enchentes que devastaram boa parte de seu território, deixando um rastro de destruição, mortes e sofrimento. A tragédia, como tantas já ocorridas dentro e fora do país, é resultado direto da sanha capitalista, que avança sem escrúpulos sobre a vida. Nascido das entranhas do sistema, o negacionismo climático tem tido papel central na destruição do planeta. E no RS, sua digital também é visível.
Nos tempos atuais, o negacionismo cumpre com ao menos duas funções estratégicas. Habilmente, esconde a culpa dos verdadeiros responsáveis pelos mais variados crimes ambientais e, por outro, ofusca, com teorias conspiratórias e completamente fantásticas, os olhos de uma parte da sociedade suscetível a argumentos desse tipo e cotidianamente alimentada por fake news.
No caso da tragédia do Rio Grande do Sul, a responsabilidade é, sobretudo, da visão neoliberal que prega o Estado mínimo, o enxugamento da máquina e a austeridade fiscal a qualquer custo, ainda que isso possa significar o corte de recursos importantes para a prevenção de catástrofes, o sucateamento de empresas que administram sistemas anti-enchente e a destruição da legislação ambiental, colocando em risco a vida de milhares de pessoas.
Símbolo desse pensamento foi a declaração dada pelo governador do RS, Eduardo Leite (PSDB), de que, mesmo diante de estudos alertando para a possibilidade de o estado enfrentar problemas ambientais severos, o governo vivia “outras pautas e agendas”.
Nesse teatro trágico, o negacionismo climático também atua com desenvoltura e, em alguns casos, está até “institucionalizado”. É o caso, por exemplo, de Ricardo Gomes (PL), vice-prefeito de Porto Alegre — cidade fortemente atingida pelas inundações. Além do cargo no Executivo municipal, ele é apresentador e colaborador direto da produtora de extrema-direita Brasil Paralelo, uma das que mais propaga conteúdos negacionistas.
Entre outras conexões bastante questionáveis da produtora com setores empresariais e o vice-prefeito, a Agência Pública apontou, em reportagem recentemente publicada, que “a Brasil Paralelo tem diversas produções que colocam em dúvida a existência do aquecimento global, minimizam o impacto do agronegócio no meio ambiente e criticam ambientalistas”.
E continua lembrando que um dos documentários da produtora “nega o crescente desmatamento no país durante o governo Jair Bolsonaro e aponta reivindicações de ONGs e indígenas como parte de uma conspiração global para frear o agronegócio brasileiro”.
No caso do governo de Eduardo Leite, críticos de várias áreas vêm apontando a falta de empenho da atual gestão tanto no que diz respeito à proteção ambiental quanto na preparação do estado para a crise climática — considerando que o território é suscetível, ao mesmo tempo, a secas e a chuvas extremas —, além, de como dito antes, ter ignorado alertas de cientistas e instituições públicas sobre as enchentes, feitos há anos.
Com tantos apontamentos desprezados ao longo dos anos, alguns feitos pela própria instituição, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) enviou, no final de abril, carta ao governador reafirmando os riscos, já levantados, que as mudanças climáticas poderiam trazer ao estado.
Diante de tantas informações, “ou se mexem ou se declaram de vez negacionistas climáticos e continuam nessa bolha opaca de onde só enxergam com as lentes da economia”, disse, ao Brasil de Fato, Heverton Lacerda, presidente da Agapan, sobre o documento.
Vale destacar que, segundo dados do Ministério de Integração e de Desenvolvimento Regional, entre 2013 e 2023, o Rio Grande do Sul foi o estado mais atingido por eventos climáticos extremos no Brasil, com mais de 2,7 mil decretações de situação de emergência e de estado de calamidade.
Leite — que embora tenha flertado com o bolsonarismo sempre procurou se colocar como um político moderno —, rebateu as acusações de negacionismo durante entrevista ao Roda Viva: “Não tenho nenhuma pretensão de ser mito ou salvador da pátria, mas insisto: não erramos por omissão, negligência ou negacionismo, esse governo respeita as questões ambientais”.
Desinformação e negacionismo
Como se não bastassem governantes que flertam com o negacionismo — para não falar dos vários deputados e vereadores gaúchos bolsonaristas adeptos da mesma crença —, a situação é ainda pior graças às redes sociais. Desde que a tragédia do RS começou, uma enorme gama de notícias falsas surgiram, boa parte delas atreladas a esse tipo de “pensamento”.
Segundo estudo feito pela NetLab (Laboratório de Estudos da Internet e Redes Sociais) da UFRJ, as narrativas difundidas durante a crise buscam: “(1) afirmar que a resposta governamental tem sido insuficiente; (2) negar a relação entre os eventos e as mudanças climáticas; (3) inserir a tragédia nas pautas morais e em teorias da conspiração; (4) inflar o papel de seus aliados na resposta à crise; e (5) se beneficiar da tragédia através de autopromoção, pedidos de doação e fraudes”.
No que diz respeito ao negacionismo, pontua: “também chama atenção as ações de alguns grupos de mídia que disseminam o negacionismo climático ao promoverem arrecadações e organizarem doações. É o caso da produtora Brasil Paralelo” — novamente ela —, “que se destaca no conspiracionismo ambiental, e da Revista Oeste, que tem disseminado desinformação e publicou em 05/05 uma coluna de Ricardo Felício negando as causas antropogênicas das mudanças climáticas”.
Conforme apontou a pesquisa, parte dos conteúdos usados nas redes alega que o desastre não tem relação com a ação humana; outros pregam que seria um “castigo divino”. Uma dessas postagens, inclusive, fez uma associação racista e preconceituosa ao relacionar as enchentes ao fato de o RS ter muitos adeptos de religiões de matriz africana e que por isso, Deus estaria “punindo o estado”.
Absurdos e fantasias à parte, o negacionismo e as fake news já mostraram seu poder destruidor em mais de uma ocasião — vale citar como exemplo seus efeitos sobre a pandemia de Covid-19. Neste mesmo sentido, o levantamento conclui que “ao influenciar a política nacional por meio da disseminação online, a desinformação climática se tornou um dos principais motores da tragédia”.