Há décadas a queda da primeira experiência socialista no mundo vem sendo atribuída, fundamentalmente, à burocratização das direções partidárias da URSS. Não apenas no Brasil, mas teóricos e estudiosos do socialismo de diversas partes do globo, atribuem à esta escola do pensamento administrativo e sociológico enorme responsabilidade pela assim chamada degenerescência do PCUS e de tantos outros partidos revolucionários.

O burocratismo seria, portanto, uma das principais causas de fenômenos letais à vida partidária, tais como excessivo apego às regras e formalismos, rigidez nos processos de trabalho, reuniões improdutivas, resistências às mudanças, conformidade às rotinas, entre outros.

Mas as justas críticas que, em verdade, deveriam ser direcionadas às chamadas “disfunções da burocracia” parecem ter se tornado um tipo de mantra a fim de se justificar todas as nossas falhas enquanto organização partidária.

Desta forma, uma simples ata de uma reunião partidária é encarada como algo burocrático, em boa parte das vezes, pelo simples descaso com o registro deste importante documento. Ou uma mera reunião, que requer uma devida metodologia para ser realizada, é evitada por pura conveniência deste ou daquele dirigente. Ou a adoção do devido rigor no cumprimento de alguns regulamentos é relativizado pela conveniente facilidade em se culpar estas exigências como protocolares. E assim, o combate ao “burocratismo” continua sendo o principal argumento para se justificar uma frouxidão na gestão partidária que, certamente, deveria ser mais rígida.

 Em que pese serem “trabalhosas”, as ações acima mencionadas – e tantas outras mais -, devem ser vistas como imprescindíveis para todas as organizações, ainda mais para um Partido que se reivindica revolucionário. O fato concreto é que a assim chamada escola burocrática, com grande contribuição de Max Weber, trouxe por assim dizer importantes inovações no campo das gestões, tanto na iniciativa privada, na administração pública ou no chamado “terceiro setor”.

Ninguém pode negar, por exemplo, que a impessoalidade é um princípio burocrático dos mais importantes em qualquer organização, sobretudo para o Partido Comunista. A indicação de um(a) camarada para ocupar algum cargo remunerado, que irá lhe propiciar vantagens profissionais e pessoais, jamais poderá ser feita baseada em predileções particulares, amizades, parentesco ou quaisquer afinidades de cunho individual. A escolha de um quadro partidário para qualquer posto deve (ou deveria) sempre respeitar critérios técnicos e políticos muito bem definidos, com uma comissão específica do Partido, imparcial e sem conflito de interesses, de forma transparente e coletiva. Deve-se fortemente combater os lobbies pessoais, em todos os níveis, considerando-os como práticas nocivas ao Partido. O mérito (não confundir com meritocracia) deve voltar a ser um critério fundamental.

E quais critérios seriam estes? Esta é uma decisão que cabe à direção partidária definir, respeitando os deveres militantes elencados no Estatuto do Partido. Mas é sempre importante destacar alguns elementos que, à luz da ciência administrativa, são bastante fáceis de serem mensurados, entre eles, histórico de contribuição militante e financeira ao Partido, capacidade de trabalhar em equipe, cordialidade no trato com as pessoas, representatividade e tantos outros atributos que podem e devem ser avaliados quantitativamente por uma comissão dirigente minimamente isenta, sem qualquer conflito de interesses. A quem pode interessar o patrimonialismo partidário?

Diante do exposto, surge uma pergunta crucial: desburocratizar ou burocratizar o Partido? A resposta me parece simples: Nem um, nem outro.

O desafio principal é sermos capazes de, do ponto de vista organizativo, reinventar o Partido, adotando uma “escola administrativa” própria, bebendo de pontos positivos de outras escolas, sem abrir mão da eficiência (tão propalada pela Administração Científica), perseguindo sempre o respeito à dignidade de todos os militantes (defendida a partir da Teoria das Relações Humanas) e aprimorando a Governança partidária de modo a combater permanentemente o assédio capitalista que aflige fortemente militantes e até mesmo quadros mais experimentados do Partido Comunista.

É neste caminho que o PCCh parece vir seguindo. A própria utilização do termo “governança” mostra a amplitude do pensamento, não hesitando em se apropriar de conceitos e teorias elaboradas a partir de ideólogos liberais e instituições com o FMI e o Banco Mundial, para aperfeiçoar a “administração partidária”. Importante lembrar que o próprio Lênin nutria grande interesse pela administração científica de Taylor, absorvendo de diversas fontes para dar respostas às exigências revolucionárias e proletárias de sua época.

A obra intitulada “A Governança da China”, contendo textos entre discursos e artigos de Xi Jinping, é prenhe destas preocupações básicas de como se administrar o Partido na complexa quadra histórica em que vivemos. Há alguns capítulos, em especial, no tomo II, que merecem ser lidos com especial atenção. Neste tópico, pode-se observar, por exemplo, a preocupação do PCCh com um fenômeno que nos acomete com bastante intensidade: quadros que passam a gozar de “grande poder na mão, por isso, tornam-se facilmente alvos de todo tipo de tentações, tramas, lisonja e louvores excessivos”.

O Projeto de Resolução Política do 16º Congresso do PCdoB fala sobre isso apenas em seu parágrafo 109, onde alerta: “Com o advento avassalador das redes sociais nos processos políticos, sobressai-se o estímulo ao desempenho individual das lideranças, subordinando projetos coletivos a segundo plano. Por vezes, lideranças forjadas pelo PCdoB criam em torno de si redes de apoio que não se conectam com o conjunto da ação partidária, emitem opiniões sobre assuntos candentes desconexas da orientação central, promovendo ambiente de dispersão e confusão de posicionamentos.”  Ainda ao final do parágrafo 110, alerta também que “O Partido deve dirigir seus mandatos parlamentares, não o contrário”. Mas é muito pouco para tratar um problema tão sério em uma “tese” de 48 páginas. Além de se reconhecer o fenômeno, é fundamental apontar rumos para as superações destas mazelas.

Em nosso caso, seguramente não é necessária tanta rigidez na cobrança de alguns requisitos aos quadros e militantes brasileiros, tal como observamos no PCCh. Temos uma cultura singular que deve ser levada em conta. Mas há de se começar urgentemente uma transição rumo a um mínimo necessário de um conjunto de valores éticos e morais que possam passar mais confiança ao conjunto militante que conhece bem o adágio popular que expressa: “o discurso convence, mas a prática arrasta”.

Qual militante partidário vai querer continuar atuando nas fileiras de um partido que, mesmo adotando um discurso e uma linha política avançada e justa, é conivente com diversas práticas inapropriadas de seus dirigentes? Até mesmo um jovem inexperiente, sabe muito bem o que significa conflito de interesse, nepotismo, desvio de conduta, assédio moral e tantas outras práticas nocivas ao Partido que nada têm a ver com burocracia. Mecanismos de controle para estes fenômenos são fartamente discutidos e implementados por diversos partidos revolucionários e até mesmo organizações burguesas.

O caminho que se aponta ao PCdoB é o rever a sua atual forma organizativa que, ao meu ver, sem desrespeito aos camaradas que atuam na área, é frouxa e liberal, permitindo toda sorte de carreirismos e arrivismos, formando cada vez mais uma cultura de bajulação e lisonja aos “chefes” superiores para se manterem em seus cargos.

Algumas tarefas exigem disponibilidade de tempo integral por parte do dirigente. Não é crível que uma frente de atuação estratégica ao Partido tenha seu secretário nacional dividindo seu tempo com um mandato parlamentar, por exemplo. Ou um presidente de Partido, seja na esfera nacional ou estadual, divida esta tarefa estratégica com outras funções que não sejam exclusivamente cuidar mais e melhor do Partido.

Em tempos em que se fala muito da China e de seu Partido Comunista, faz falta que nos debrucemos também sobre como os chineses promovem a sua gestão partidária e extrairmos de lá vários ensinamentos. Mas o primeiro passo é termos noção da gravidade do atual quadro em que vivemos e a devida disposição para reverter este quadro, enquanto há tempo.

Luciano Rezende Moreira é secretário de formação do Comitê Municipal do PCdoB em Volta Redonda/RJ e professor.