Região do Centro Administrativo do estado é inundada. Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

“Estou muito, muito triste, você não imagina…É uma frustração”. A frase, em tom de indignação, foi dita por Joel Goldenfum, engenheiro e diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao analisar a trágica situação de seu estado.

Não é para menos. Diante da tragédia que assola o Rio Grande do Sul desde a semana passada, talvez a pior desta natureza já vista no Brasil, Goldenfum se recorda do tanto de estudos e alertas já feitos por ele e muitos outros cientistas e especialistas ao longo de anos. 

Ao falar ao Portal Vermelho sobre o tema, ele narra mais um desastre anunciado, que poderia ter sido, se não totalmente evitado, ao menos mitigado. Afinal, não é de hoje que se sabe das consequências, para a vida humana e para o meio ambiente, da máxima exploração dos recursos naturais promovida pela lógica capitalista, que vem gerando a crise climática. 

Proteladas por anos, as soluções para tornarem as cidades mais resilientes às chuvas e às secas, entre outros fenômenos climáticos que podem assolar comunidades inteiras, se tornaram ainda mais urgentes no período atual.

No Rio Grande do Sul, não faltaram avisos da ciência e da própria natureza. Eventos mais recentes do que a histórica enchente de 1941 — superada pela de agora —, como as inundações de setembro e novembro de 2023 de um lado, e as estiagens que duraram três anos, finalizadas no ano passado poucos meses antes das tempestades do segundo semestre, já deveriam ter servido de alerta. Mas, pouco mudou. E veio maio de 2024. 

Diante da marcha da crise climática e como forma de evitar novas tragédias dessa magnitude, Goldenfum defende medidas como melhorar o monitoramento das áreas mais sensíveis, capacitar a população e repensar o uso do solo, sobretudo em locais de risco, assim como criar uma cultura de prevenção de risco. Ao mesmo tempo, ele defende ser preciso rever a utilização da monocultura e estimular um uso ambientalmente mais amigável do solo e das águas. “Para obter lucro mais rápido, as pessoas super-utilizam os recursos. E isso causa sérios problemas ambientais”, diz. 

Leia abaixo os principais trechos dessa conversa. 

A enchente de 1941

“Não temos controle sobre fatores físicos, climáticos, hidrológicos. Então, a gente precisa trabalhar em outros campos. Nós já tivemos um evento muito parecido com esse, em 1941. E eu creio que, não por coincidência, também foi em um ano de El Niño  muito parecido com esse, com precipitações muito altas. O nível mais alto (do Guaíba) foi alcançado na mesma época, inclusive — naquele ano, foi no dia 8 de maio, praticamente no mesmo dia que agora. E era o nosso principal evento desse tipo. Quando se falava deste assunto, a referência era a enchente 41. Essa de agora a ultrapassou. E não foi surpresa quando a gente começou a ver a quantidade de chuva”. 

Ocupação do solo


Joel Goldenfum. Foto: reprodução

“Mas, temos algumas diferenças em relação a 1941. Uma delas, fácil de constatar, é o tamanho da população. Naquele ano, Porto Alegre tinha menos de 280 mil pessoas (hoje, são cerca de 1,3 milhão, segundo o Censo 2022). As outras cidades atingidas no Vale do Taquari, por exemplo, eram pequenas. Algumas delas nem eram municípios, mas parte de outros maiores. Então, realmente isso traz um efeito muito maior porque o uso e ocupação do solo é diferente e hoje há pessoas em áreas cadastradas como de risco”. 

Mudanças climáticas

“Outra questão inegável é que nós estamos enfrentando mudanças climáticas. Os estudos que têm sido feitos — inclusive por nós aqui no Instituto — indicam claramente que, em termos de volumes de água, se espera uma redução para Norte, Nordeste e até Sudeste do Brasil, mas um aumento dos volumes médios aqui, no Sul. E se observa uma tendência ao aumento de frequência e intensidade de eventos extremos. Então, a mudança climática é um fator importante. Portanto, o que está acontecendo são problemas decorrentes de ocupação inadequada e das mudanças climáticas”. 

Estudo ainda atual

“Entre 2014 e 2016, realizamos no Centro de Pesquisa e Estudos sobre Desastres (Ceped, vinculado à UFGRS), um estudo sobre a bacia do rio Taquari-Antas. Nesse estudo, chegamos a uma série de conclusões. E nós a resumimos em três termos de referência. Um era a necessidade de melhoria do monitoramento, tanto de questões meteorológicas quanto de questões hidrológicas, ou seja, o monitoramento da bacia como um todo. 

O segundo tratava da capacitação, não só para técnicos, mas também para a população, para a gente poder aprimorar a percepção de risco. As pessoas, muitas vezes, não sabem que estão em áreas de risco. Elas não sabem o que fazer quando ocorre um evento como esse. Não adianta, na última hora, você botar uma sirene se a pessoa não sabe nem para onde ela deve ir”. 

O terceiro produto visava repensar o uso do solo. Era um tema de referência para a contratação de planos diretores para os municípios envolvidos, identificando-se que tipo de uso pode ser dado para cada área. Tem áreas que só podem ter usos que passíveis de conviver com inundação, porque nada mais é possível. 

A orla de Porto Alegre, por exemplo, é um parque linear inundável. Sua função é ser inundada quando acontece uma cheia para que o Guaíba tenha um espaço que ele possa utilizar. Claro que em um evento excepcional como este, a coisa fica mais séria, mas em eventos um pouco menores, a ideia é justamente essa. Então, o uso com quadras esportivas ali, em princípio, está correto”.

Uso adequado de áreas de risco

“Se a gente não der um uso adequado, esse tipo de área vai acabar sendo ocupada para usos inadequados. Daqui a pouco, tu tens uma ocupação irregular dentro da área, porque a área não foi usada. E o problema não é o fato de ser irregular em si, o problema é o fato de ser uma área de risco, destinada a abrigar o excesso da água. A questão, portanto, envolve fatores climáticos, meteorológicos, e de planejamento de uso do solo, e mais importante, da criação de uma cultura de prevenção de risco”. 

Indignação

“Apesar desse estudo ter sido feito em 2014- 2016, nada mudou de lá para cá. O estudo foi financiado pela Secretaria de Defesa Civil Nacional, com verba pública, por instituição pública — no caso da Universidade Federal do RS —, e entregue para o governo na época,. Só que não foi só aqui, foi feito em vários locais do Brasil. E pelo que eu tenho conhecimento, não se tomou maiores medidas, apesar dos estudos indicarem essa necessidade (…). Talvez você esteja notando, pelo meu tom de voz, a minha indignação. A gente faz todo um estudo para depois ser guardado dentro de uma sala”. 

Manejo do solo e da água x monocultura

“A questão toda é que nós temos uma cultura — que vem há muito tempo, de vários governos e que alguns incentivam mais, outros menos — de exploração máxima dos recursos, no caso, do solo e da água. E o que a gente vê com isso é que, para obter lucros mais rápidos, as pessoas super-utilizam esses recursos. E isso causa sérios  problemas ambientais”. 

A monocultura acaba causando uma série de problemas. Existem estudos mostrando que o bioma Pampa já está em risco de extinção em função das culturas locais, principalmente de soja e arroz, que são dominantes na área. E isso é um problema grave.

Existem outros estudos que indicam que, se você fizer um manejo de água e solo mais consciente, num prazo de alguns anos, você consegue recuperar o investimento inicial e passar a ter lucro. Se você manejou corretamente a água e o solo, você fica menos vulnerável a eventos climáticos extremos”. 

Quando a gente pensa em desastre, aqui no Sul, a gente quase que só pensa em inundação, mas a seca é um desastre tão grande, ou pior, do que a inundação. Aqui nós estamos vivendo ciclos de seca e ciclos de inundação. Se nós fizermos pequenos espaços com capacidade de armazenar água, de melhorar o plantio para reduzir o grau de perda de solo, pode ser que se gaste no início, mas depois a gente vai ter maior fixação do carbono do solo, nós vamos ter menor necessidade de nutrientes e de defensivos agrícolas”. 

Financiar para melhorar 

“Mas, se você fala com, digamos, um agricultor médio aqui no Sul, ele vai dizer ‘eu não posso esperar seis anos, eu tenho que lucrar no primeiro ano’. Então, existe essa cultura do lucro imediato. E isso talvez seja verdade. Por isso, alguns programas de financiamento deveriam ser voltados para prazos mais longos, para que os produtores possam fazer sistemas mais amigáveis ao meio ambiente. 

E imagina o seguinte: se você faz um sistema desses, por exemplo, em lavouras de soja — que é vendida para o exterior como commodity, como um produto bruto — e você tem esse produto sendo feito com técnicas menos agressivas ao meio ambiente e rotular o seu produto como ambientalmente amigável, você pode agregar valor a ele, vender mais caro”. 

5 etapas para lidar com desastres

“Outra questão importante quando a gente pensa em desastre é levar em consideração cinco etapas: prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação. 

A prevenção é o conjunto de ações destinadas a reduzir a ocorrência e a densidade de desastres. A mitigação visa a limitar os danos. A preparação, basicamente, constitui  medidas tomadas para obter uma resposta eficaz em desastres, como planos de contingência e missões de alerta, por exemplo. Depois, vem a resposta, que são ações de socorro, e a recuperação, onde a gente trata de reestabelecer a normalidade da comunidade afetada, mas nunca reproduzindo o cenário anterior.  Não podemos reconstruir exatamente da maneira que era antes de o problema vir. Mas a gente pode pensar em melhores técnicas, em não ocupação de áreas de risco etc. 

Há situações (como em Roca Sales e Muçum) que envolvem cidades inteiras, e neste caso, é preciso repensar muito bem em como fazer isso porque, por um lado, é complicado você retirar as pessoas que estão naquela comunidade; por outro, não é possível expô-las novamente a um risco desses. 

Cidades como Muçum e Roca Sales estavam acostumadas com eventos de enchente, só que aquela enchente que sobe e desce. E normalmente, ela tinha grande energia na calha do rio, mas na planície ela só subia e descia. Já as duas enchentes que nós tivemos em setembro e novembro, e agora de novo, foram com grande energia na várzea, e foi levando tudo, até estradas, prédios, o que nunca tinha acontecido antes”.