Bombeiros lutam para debelar incêndio em prédio de Belgrado bombardeado pelos EUA | Foto: Reprodução

Há 25 anos, em 24 de março de 1999, com a agressão militar contra a Iugoslávia, bombardeada por 78 dias, passando por cima do Conselho de Segurança da ONU e da lei internacional, os EUA, sob o governo de Bill Clinton, explicitou ao mundo a entrada em vigor da ditadura norte-americana sobre o planeta pós-dissolução da URSS – há ouvidos que preferem ‘hegemonia’ -, mais tarde rotulada de “ordem global sob regras”.

Agressão que deixou um rastro de cinco mil mortos, mais asilos de idosos, creches, escolas, fábricas, estações de tratamento de água, linhas de transmissão de energia e até mesmo um trem de passageiros em destroços.

Cerca de 2.300 mísseis de cruzeiro e 14.000 bombas foram lançados sobre o pequeno Estado soberano no centro da Europa.

Nem a TV estatal ou a embaixada chinesa em Belgrado escaparam da barbárie. Estava aberto o caminho para os ataques ao Iraque, ao Afeganistão, à Líbia e a quem quer que prezasse a própria soberania, “as guerras eternas”. Com a Iugoslávia esquartejada, o mundo estava de volta à lei da selva.

Em sua blitzkrieg aérea, a Otan despejou entre dez a 15 toneladas de urânio depletado, que provocaram um desastre ambiental e multiplicaram por cinco os casos de câncer.

“MORTE AOS FASCISTAS DA OTAN”

O presidente sérvio Aleksandar Vucic lembrou que há 25 anos, “19 dos [países] mais poderosos e mais fortes atacaram a Sérvia – sem qualquer direito e pela primeira vez sem uma decisão do Conselho de Segurança da ONU”. Ele descreveu como os membros da Otan “destruíram o país, mataram crianças, destruíram o seu território”.

No domingo, em Belgrado, uma multidão homenageou na Praça da República os mortos e os que resistiram, e denunciou os crimes de Washington e de seus cúmplices. Os manifestantes portavam bandeiras sérvias e cartazes com as inscrições “morte aos fascistas da Otan” e “morte ao imperialismo”, segundo a agência de notícias TASS.

Uma enorme faixa com os dizeres “A Otan é uma ocupante, fora da Sérvia” foi estendida. Também houve um ato, perto do monumento Chama Eterna, dedicado às vítimas da agressão de 1999, em que também foi expressa solidariedade ao povo russo, com um minuto de silêncio em memória dos mortos no ataque terrorista à casa de shows Crocus.

A embaixada russa em Belgrado lembrou as palavras do então primeiro-ministro russo Yevgeny Primakov, que estava a caminho de Washington para uma reunião com Clinton quando soube do bombardeio, e mandou o avião dar meia volta.

“Este não é apenas um ataque contra um país, mas um ataque contra toda a ordem mundial que surgiu após a Segunda Guerra Mundial”.

Como pretexto para a agressão, os EUA organizaram uma provocação com bandos de terroristas e traficantes albaneses, paparicados pela CIA, em Kosovo/Metodiha, o milenar berço da nação sérvia, alegando ser uma operação “humanitária”.

“INACEITÁVEL”, DISSE PUTIN

A TV russa exibiu no domingo um documentário intitulado “Belgrado”, de Andrei Kondrashov, sobre a agressão da Otan à Iugoslávia em 1999.

“O que o Ocidente fez foi completamente inaceitável. Sem qualquer resolução do Conselho de Segurança da ONU, eles começaram diretamente uma operação militar, uma guerra de fato, no centro da Europa, e com o bombardeio da capital [da Iugoslávia], Belgrado”, disse Putin ao canal Rossiya 1.

O Conselho da Federação Russa (que equivale ao Senado) dirigiu à ONU, aos parlamentos do mundo e às organizações interparlamentares, sobre os 25 anos da agressão à Iugoslávia, um chamado a condenar essa operação militar ilegal e a levar seus autores à justiça. A convocação pede, ainda, que se combata as tentativas de “distorcer a verdade histórica sobre os trágicos acontecimentos de 1999”.

Também o presidente dos comunistas russos, Gennady Ziuganov, se pronunciou sobre a data. “Os EUA, os anglo-saxões, os criadores da nova ordem mundial, estabeleceram a tarefa de esmagar todos os estados independentes. E usando, o exemplo da Iugoslávia, eles mostraram como continuariam a acabar com a Federação Russa”.

“No mês de março, com vários anos de intervalo, ocorreram três atentados e três massacres americanos”, acrescentou Ziuganov. “A Iugoslávia foi bombardeada em 24 de março, o Iraque e a Líbia em outros 19 de março. Assim que os líderes dos países declararam a sua independência, caíram imediatamente sob fogo cruzado”.

“Quanto ao nosso país, tornamo-nos a primeira vítima da grande “revolução colorida”, que resultou no colapso traiçoeiro de uma grande potência – a URSS”.

“VOCÊ ESTÁ MATANDO NOSSOS IRMÃOS”

Para Ziuganov, Yeltsin, que caíra completamente sob o domínio dos americanos com seus Gaidars e Chubais, acordou pela primeira vez quando viu que eles haviam começado a bombardear a Iugoslávia.

“Se ele tivesse fornecido aos iugoslavos “agulhas” e “flechas”, nossos outros sistemas de defesa aérea, tudo teria sido diferente. Quando entregamos os nossos C-75 ao Vietnã, vinte e seis aviões americanos caíram do céu. E então eles não voaram por seis meses.”

Ele fez questão de lembrar a vontade, inteligência e coragem de Primakov, ao dar meia volta sobre o Atlântico, dizendo a Clinton: “por que voar até você? Afinal, você está matando nossos irmãos!”

Ziuganov lembrou do irmão do então presidente Slobodan Milosevic, Borislav, que era o embaixador iugoslavo em Moscou. “Ele e eu percorremos todos os escritórios, apelando às autoridades da época para que apoiassem mais decisivamente a Iugoslávia. Mas foi impossível encontrar uma resposta por parte do governo Yeltsin.”

Mais tarde – acrescentou o líder comunista russo -, “Milosevic dirigiu-se a nós com um aviso: “Russos, acordem! Este raivoso cão ocidental agarrou nossa garganta e amanhã agarrará a sua. E você vê um exemplo de como será dilacerado e destruído!”

“Sim, nessa altura estendemos a mão à Iugoslávia, mas com demasiada hesitação. E as ações brilhantes dos nossos homens na frente não foram apoiadas por ações correspondentes em nível internacional”.

“PLANOS BEM AVANÇADOS”, CONFESSOU O GENERAL CLARK

A Resolução 1244 do Conselho de Segurança garantia a soberania sérvia, mas a província foi colocada sob intervenção da Otan. Em 2008 – mesmo ano em que o governo W. Bush anunciou o “convite” à Ucrânia para anexação -, o governo “provisório” do Kosovo, apoiado pelos EUA, declarou “independência”, o que jamais foi reconhecido por Belgrado, apesar de todas as pressões. Washington obteve uma base imensa, Camp Bondsteel, considerada uma “espécie de Guantánamo”.

Depois de um golpe de Estado que derrubou seu governo, o presidente Milosevic foi levado para o Tribunal da Otan em Haia, onde acabou morrendo em condições suspeitas, depois de desmoralizar os pretensos “acusadores” e “juízes”, e continuar defendendo o direito da Iugoslávia à soberania e à liberdade.

Em seu livro de memórias, o general americano que chefiava a Otan na agressão, Wesley Clark, revelou que os planos para a guerra estavam “bastante avançados em julho de 1998”. A provocação de Racak foi realizada em janeiro de 1999.

Há outras memórias sobre os idos de 1999. Em 2022, uma entrevista de John Biden de 2000, quando era senador, em que ele se gabava de ter sido quem pressionou para bombardear Belgrado, voltou à tona.

Para muitos analistas, foi a agressão à Iugoslávia a fagulha que reacendeu na Rússia a chama da soberania, explicando boa parte da trajetória depois vista com Putin.

PILGER: NÃO ESQUEÇAM A IUGOSLÁVIA

O saudoso cineasta John Pilger, em “Não Esqueçam a Iugoslávia”, registrou que o país era “uma federação independente e multiétnica, ainda que imperfeita, que se posicionou como uma ponte política e econômica durante a Guerra Fria” e um dos fundadores do Movimento dos Não Alinhados.

“Isto já não era aceitável para a Comunidade Europeia em expansão, especialmente para a Alemanha, que principiara um esforço para o Leste a fim de dominar o seu ‘mercado natural’ nas províncias iugoslavas da Croácia e da Eslovênia”.

“No momento em que os europeus se encontravam em Maastricht, em 1991, um acordo secreto fora lavrado; a Alemanha reconhecia a Croácia e a Iugoslávia era condenada. Em Washington, os EUA asseguravam que à sufocada economia iugoslava fossem negados empréstimos do Banco Mundial e a defunta Otan foi reinventada como o agente de força.”

“Numa conferência sobre a ‘paz’ no Kosovo, em 1999 na França, foi dito aos sérvios para aceitarem a ocupação pelas forças da Otan e uma economia de mercado, ou seriam bombardeados até à submissão. Foi o precursor perfeito dos banhos de sangue no Afeganistão e no Iraque.”

“Os trágicos acontecimentos na Iugoslávia em 1999 só foram possíveis porque os Estados Unidos sentiram um nível colossal de permissividade. O colapso do bloco socialista tornou as ações de Washington e Bruxelas incrivelmente autoconfiantes e egoístas. Escondendo-se atrás de slogans sobre a paz, cometeram atrocidades incríveis”, afirmou ao jornal russo Vzglyad o doutor em ciências políticas, o sérvio Stevan Gajic.

“É claro que esta ação arbitrária, que não tinha base legal, contribuiu para o início da degradação do sistema de segurança global”, ele sublinhou.

“Iraque, Líbia, Síria – todos estes países também são vítimas do ataque de 1999”. Washington retirou o estopim da necessidade de chegar a acordos com outros países para o início de operações militares, lembra o cientista político.

“É claro que essas ações chocaram outros grandes Estados. A Rússia e a China ficaram chocadas com a impunidade da agressão e estão agora ajudando a mudar a ordem mundial que foi criada naquela época.”

Fonte: Papiro