Almoço para “relembrar” golpe de 64 mostra a importância contínua da luta democrática
Foto Marcelo Camargo ABr
O Clube Militar vai realizar um almoço com tom comemorativo aos 60 anos do golpe que levou à instauração da ditadura militar em 1964. O evento, marcado para 27 de março, está sendo anunciado como um momento para “relembrar” o “movimento democrático” de 1964. Na ocasião, após os militares tomarem o poder, os partidos políticos foram proibidos, milhares de opositores ao regime foram presos, torturados ou mortos. As eleições para presidente só foram retomadas de maneira indireta em 1985.
Entidades ligadas à luta contra a ditadura militar no Brasil têm se manifestado no sentido de pontuar claramente o significado da data. O Instituto Vladimir Herzog encaminhou uma nota intitulada “Defender a Democracia Ontem, Hoje e Sempre”, destacando a importância contínua da luta pela justiça, memória e verdade em relação ao período sombrio da ditadura militar no Brasil. Com isso, o documento ressalta que, mesmo após mais de duas décadas desde o fim do regime autoritário, os desafios persistem e a democracia ainda não foi plenamente consolidada (leia mais abaixo).
Apesar da polêmica gerada por estes almoços, o Clube Militar não é visto como uma instituição de relevância política, o que minimiza o significado destas celebrações restritas a um grupo de fanáticos revisionistas da história.
Em declaração, o conselheiro da Comissão de Anistia, Mario Albuquerque, diz não ver problema no fato do Clube realizar essas celebrações. “Problema haveria se fossem as forças armadas do país”, afirma o ex-preso político. Ele entende que o Clube Militar é uma entidade da sociedade civil e tem todo o direito de fazer celebrações que achar que deve fazer, desde que não afrontem a Constituição.
“Afronta haveria se fossem órgãos de Estado, como as Forças Armadas. A propósito, as entidades de anistiados políticos também realizarão atos alusivos à data, porém, no sentido contrário. Eu mesmo participarei de alguns. Viva a Democracia!”, declarou.
A historiadora do Memorial Doi-Codi, Deborah Neves, afirma que a democracia não está consolidada e segue sendo uma construção diária, em todo o mundo. “Tem havido um avanço da extrema direita que não é democrática”, pondera. Para mudar a situação no Brasil, Deborah acredita que para além dos esforços da sociedade civil organizada, é necessário que haja comprometimento do Poder Público.
“Fizemos uma transição da ditadura para a democracia de forma negociada, mantendo alguns privilégios, mantendo essas pessoas em cargos de poder, mantendo as empresas privadas absolutamente ilesas sobre os crimes que cometeram ou que financiaram. De certa forma, existe uma sensação de impunidade na população”, acrescentou.
No mês passado, o general Tomás Paiva, comandante do Exército, afirmou a interlocutores que não haverá uma Ordem do Dia em 31 de março para qualquer evento em referência ao aniversário do golpe. Na ocasião, ele afirmou que militares da ativa que contrariarem a medida serão punidos, assim como ocorreu no ano anterior. O governo Bolsonaro incentivava eventos do tipo e o Ministério da Defesa da gestão chegou a publicar uma Ordem do Dia com referência ao golpe, classificando a intervenção militar como “marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da população da época”.
Em março do ano passado, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, ressaltou a grande responsabilidade da ditadura na desigualdade social vivida no país até hoje. “Quantos brasileiros e brasileiras poderiam ter sido salvos da ignorância, de doenças e do abandono se não fossem as políticas excludentes da ditadura brasileira?”, questionou durante a recomposição da Comissão de Anistia.
A Comissão Nacional da Verdade (CVN) também destacou que em 2014, quando o golpe de 64 fazia 50 anos, que a data “não foi alvo de comemoração por qualquer segmento de expressão social”. Esse fato foi destacado pela CNV como parte do sucesso do resgate e preservação da memória social. A ordem no governo é manter a data no ostracismo. O presidente Lula tem dito que o 8 de janeiro, em que houve tentativa golpista na invasão à Praça dos Três Poderes tem sido uma oportunidade para garantir que militares e outras autoridades esclareçam para a população até que ponto estão comprometidos com a democracia. Vários dos militares da ativa têm sido convocados para depoimentos na Política Federal por envolvimento no episódio.
Em dois anos e sete meses de funcionamento, a CNV identificou 434 mortos e desaparecidos políticos, vítimas da repressão do regime militar. O relatório final da comissão reconheceu, entretanto, que diversos crimes ainda precisão ser investigados, especialmente os cometidos contra as populações indígenas e camponesas que “certamente acarretarão a identificação de número maior de mortos e desaparecidos”.
A comissão também destacou que em 2014, quando o golpe de 64 fazia 50 anos, a data “não foi alvo de comemoração por qualquer segmento de expressão social”. Esse fato foi destacado pela CNV como parte do sucesso do resgate e preservação da memória social.
General de pijama
Para participar do almoço, no Rio de Janeiro, é preciso pagar o convite de R$ 95. Durante o evento, previsto para o próximo dia 27 de março, está previsto o discurso do general reformado Maynard Marques de Santa Rosa, exonerado em 2010 da chefia do Departamento Geral de Pessoal do Exército.
Na ocasião, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assinou a remoção do cargo, estava no segundo mandato. A exoneração ocorreu devido a nota divulgada por Santa Rosa com críticas à Comissão Nacional da Verdade (CVN), criada para apurar os crimes cometidos durante os 21 anos de ditadura militar. No texto que levou a demissão do general, Santa Rosa afirmava que a comissão era comandada por “fanáticos”. Nesse mesmo ano, o general passou para a reserva.
O general Santa Rosa também comandou a Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República durante o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. Deixou o cargo em novembro de 2019. O ex-presidente Bolsonaro e diversos integrantes de seu governo são atualmente investigados pela Polícia Federal, suspeitos de terem planejado um golpe de Estado.
Em sua página na internet, o Clube Militar diz que foi fundado em 1887, sendo uma associação sem fins lucrativos com atuação em todo o território nacional. A entidade diz ainda ser “um fórum de discussão dos grandes temas nacionais, buscando soluções para os problemas brasileiros por meio de conferências, comissões, painéis, pareceres e campanhas”.
Ontem, hoje e sempre
A nota intitulada “Defender a Democracia Ontem, Hoje e Sempre”, destaca que, desde a redemocratização do país em 1988, o Brasil enfrenta obstáculos significativos na busca por garantir a justiça e a reparação para todos aqueles que foram vítimas da violência do Estado durante o regime militar, que vigorou de 1964 a 1985. O IVH destaca que a luta por memória, verdade e justiça não é apenas uma questão de revisitar o passado, mas sim de construir um presente mais justo e democrático.
A nota ressalta a necessidade urgente de medidas concretas por parte do Estado brasileiro, incluindo a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e o debate sobre a reinterpretação da Lei de Anistia, que atualmente aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, o IVH destaca a importância de políticas públicas que combatam a cultura de violência e impunidade ainda presentes na sociedade brasileira.
O Instituto também chama a atenção para a necessidade de reconhecimento e reparação dos problemas estruturais do racismo, da violência de gênero, da desigualdade social e do extermínio de populações indígenas, destacando como a falta de ações de reparação no passado contribui para os desafios enfrentados atualmente.
Por fim, o IVH reafirma seu compromisso em cobrar o avanço no cumprimento integral da garantia de direitos e de todas as políticas públicas de memória, verdade e justiça. Inspirado pela missão de buscar justiça para o caso Vladimir Herzog, o jornalista assassinado sob tortura, o Instituto se mantém firme na defesa dos valores democráticos, hoje e sempre.
No dia 31 de março, IVH, o Núcleo de Preservação da Memória Política e a OAB-SP, realizam em São Paulo a 4ª edição da Caminhada do Silêncio pelas Vítimas de Violência do Estado, com o lema “Para que não se esqueça, para que não continue acontecendo”. Neste ano, a concentração para o ato será realizada no antigo DOI-Codi, a partir das 16h, rumando em direção ao Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos Políticos, no Parque Ibirapuera. O evento faz parte do calendário oficial da cidade de São Paulo desde o ano passado.
(por Cezar Xavier)