Corpos de palestinos assassinados na fila por comida são carregados logo após o massacre | Foto: AFP

Uma equipe da ONU, que visitou o norte de Gaza no dia seguinte ao massacre na fila da comida, afirmou ter visto “um grande número” de ferimentos a bala entre palestinos – atingidos na parte superior e inferior do corpo – em Gaza, depois que tropas israelenses abriram fogo perto de um comboio de ajuda humanitária.

A afirmação foi feita na sexta-feira (1º), quando membros da organização visitaram cerca de 200 pessoas em tratamento no hospital Al-Shifa. Na ocasião, a ONU distribuiu medicamentos, vacinas, combustível e atendeu os feridos no ‘massacre da farinha’.

Foi a primeira vez que um comboio da Organização chegou à região em mais de uma semana.

“Enquanto falo com vocês, este hospital está tratando mais de 200 pessoas que ficaram feridas ontem. Vimos pessoas com ferimentos de bala. Vimos amputados e vimos crianças de até 12 anos que ficaram feridas ontem”, disse Georgios Petropoulos, chefe do Escritório da ONU para Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês) em Gaza.

“Precisamos ter uma passagem segura por toda Gaza para chegar às pessoas que precisam de ajuda humanitária”, acrescentou.

Previamente, Mohamed Salha, gerente interino do Hospital Al-Awda, afirmou à BBC que haviam recebido “176 dos feridos, dos quais 142 tinham ferimentos a bala”. Os outros, explicou, tinham quebrado as pernas ou os braços.

Assim, as alegações de Israel de que a centena de palestinos famintos mortos e quase 800 feridos no norte de Gaza que chocou o mundo inteiro eram devido a “uma debandada e pisoteio” e que “não atirou” contra ninguém, foi desmentida pela ONU, por médicos e monitores de direitos humanos, além das autoridades de Gaza.

NUMEROSOS TESTEMUNHOS

Essa constatação confirma numerosos testemunhos de que foram tiros israelenses que mataram e feriram dezenas de palestinos que buscavam desesperadamente ajuda alimentar na quinta-feira, numa situação em que as crianças vêm sendo alimentadas com ‘farinha’ feita com ração animal pelas mães em desespero.

Ainda segundo as testemunhas, a debandada só aconteceu depois que as tropas israelenses começaram a disparar contra pessoas na fila da comida.

De acordo com Petropoulos, um paciente lhe relatou que, após ser ferido no peito, caminhou até o Shifa para receber tratamento. “Ele disse que eles [os soldados israelenses] geralmente atiravam para o alto. Dessa vez, eles atiraram na parte mais densa da multidão”, disse Petropoulos.

“BALAS CALIBRE 5.56”

Relatório do Monitor Euro-Med de Direitos Humanos, que denunciou a chacina, apontou que as próprias imagens divulgadas pelo exército israelense incluem “evidências audíveis de tiros vindos de tanques israelenses posicionados perto da costa”.

As evidências – destacou o monitor de direitos humanos – mostram que dezenas de vítimas sofreram ferimentos de bala, “em vez de serem atropeladas ou esmagadas, em contraste com o que o porta-voz do exército israelense alegou”.

O Euro-Med identificou o som distinto das balas audível nas imagens como “balas 5.56 provenientes de uma arma automática usada pelo exército israelense”.

A maioria das pessoas presentes no local, incluindo aqueles que inicialmente estavam longe dos caminhões de socorro, é vista no vídeo fugindo dos caminhões e correndo na direção oposta, acrescentou o relatório.

“Isso indica que o perigo não se originou dos caminhões em si ou da multidão de pessoas ao redor, mas sim de uma fonte externa que aterrorizou todos na área, perto e longe dos caminhões”.

“Além disso, o vídeo divulgado pelo exército israelense não retrata nenhuma operação de atropelamento, o que se alinha com os relatos de vários sobreviventes de terem sido baleados nas costas enquanto tentavam fugir do local.”

SOM DOS TIROS E RAJADAS TRAÇANTES

Em outro vídeo, que granjeou grande atenção, feito pela Al Jazeera, que estava cobrindo o que deveria ser a chegada de ajuda humanitária, tanto o som dos tiros, quanto as rajadas de munição traçante no céu, em meio ao caos no entorno, são bem evidentes. Munição traçante que é usada para iluminar um trajeto determinado e ajudar tropas a ajustar a mira em seus alvos.

A trajetória dessas rajadas mostra que partem do sudoeste da estrada costeira de Al Rashid, onde estavam estacionados os dois tanques visíveis em um vídeo israelense executado por drone, a apenas 250 metros de distância.

Esse vídeo de drone israelense, que constituiu o principal esforço de Israel para tentar sustentar sua versão sobre o massacre, a da “debandada e pisoteamento”, sem áudio, acabou, como no ditado popular, o remendo sendo pior que o soneto.

Foi questionado até mesmo pelo The New York Times e pela BBC, que habitualmente são muito condescendentes com os atos israelenses.

“VÍDEO DO DRONE’ FOI EDITADO”, REVELAM BBC E NYT

Após analisar as imagens, o NYT admitiu que a qualidade e a duração dos clipes dificultam confirmar as alegações de Israel, aumentando as dúvidas sobre a sequência de eventos que levaram às mortes.

Ficou perceptível que o vídeo foi editado pelo exército israelense com vários clipes intercalados, omitindo um momento-chave antes que muitos na multidão começassem a correr para longe dos caminhões, com algumas pessoas aparentemente buscando proteção.

Após o corte, mais de dez corpos aparecem visíveis no chão, embora não esteja claro se as pessoas estão feridas ou mortas. Um pequeno número de indivíduos pode ter sido atingido por caminhões durante o pânico, e dois veículos militares israelenses também são visíveis no local.

A BBC chegou à mesma conclusão sobre o vídeo israelense, considerando que foi “editado em quatro partes”, que mostram “acontecimentos em dois locais, ambos geolocalizados pela BBC Verify”.

“As duas primeiras partes do vídeo mostram pessoas cercando dois ou mais caminhões a sul da rotatória de Nabulsi. As duas últimas partes do vídeo mostram acontecimentos a cerca de 500m do comboio em direção ao sul. Eles mostram pelo menos quatro caminhões estáticos. Novamente, as pessoas podem ser vistas movendo-se ao seu redor, mas desta vez também é possível ver o que parecem ser pessoas imóveis deitadas no chão. As imagens divulgadas pela IDF destaca essas pessoas com quadrados vermelhos e também mostram o que parecem ser veículos militares israelenses nas proximidades.

FALA MAHMOUD AWADEYAH

A BBC também analisou o vídeo da reportagem da Al Jazeera e entrevistou o jornalista que a realizou, Mahmoud Awadeyah. Ele relatou que os veículos israelenses começaram a disparar contra as pessoas quando a ajuda chegou. “Os israelenses atiraram propositalmente contra os homens… Eles estavam tentando se aproximar dos caminhões que transportavam a farinha”.  Eles foram alvejados “diretamente”, e as pessoas “foram impedidas de se aproximar dos mortos”.

Fonte: Papiro