Longa fila de caminhões aguardando para entrar em Gaza pela passagem de Rafah | Foto: Eskinder Debebe - ONU

Reportagem da CNN revelou que anestésicos e máquinas de anestesia, muletas, cilindros de oxigênio, ventiladores mecânicos, geradores e sistemas de purificação da água encabeçam a lista de itens de ajuda humanitária para Gaza negada por Israel e que 15.000 toneladas de ajuda, metade disso, de alimentos, encontra-se parada, sob os critérios mais obscuros e opacos, em um ato de obstrução e desumanidade.

Outros itens que acabaram no “limbo burocrático” – o benevolente termo é por conta da CNN – incluem “tâmaras, sacos de dormir, remédios para tratar o câncer, pastilhas para purificação de água e kits de maternidade”, assim como aparelhos de raios-x.

Em sua investigação, a CNN entrevistou mais de duas dezenas de funcionários humanitários e governamentais e analisou documentos compilados pelos principais participantes da operação humanitária que listam os itens mais frequentemente rejeitados pelos israelenses.

À CNN, funcionários que pediram, por medo, para ficar no anonimato, descreveram um quadro de obstrução deliberada à entrega à ajuda humanitária, sob as alegações mais esdrúxulas.

A questão do estrangulamento da ajuda por parte de Israel tornou-se explosiva perante a opinião pública no mundo inteiro com o assim chamado “massacre da farinha”, em que milhares de palestinos famintos que buscavam comida junto de caminhões da ajuda, no norte de Gaza, onde a ajuda não chegava há muito tempo, foram alvo de tiros disparados pelas tropas de ocupação, causando centenas de mortos e feridos.

A relação de itens, por si só, é uma confissão de crime de guerra, ao negar anestésicos, ventiladores mecânicos, kits de purificação da água e até mesmo remédios contra o câncer em um quadro em que amputações são feitas sem anestesia, como fartamente documentado, com dois milhões de desabrigados, 400 mil casas destruídas e infraestrutura de saúde e saneamento em ruínas, 100 mil mortos e feridos, um quarto da população sob fome extrema e repetidas notícias de crianças mortas por desnutrição.

“CAOS ARQUITETADO”

A obstrução é cometida por um órgão da ocupação de nome Coordenadoria de Atividades de Israel nos Território (COGAT, na sigla em inglês), encarregada desde a retirada israelense de Gaza de manter o enclave como um campo de concentração a céu aberto.

Mesmo que a ajuda venha a obter a aprovação da COGAT, depois de uma longa espera, e da inspeção na fronteira, em qualquer bloqueio no meio do caminho à população necessitada pode arbitrariamente ser embargada por algum agente israelense no terreno.

“É um caos perfeitamente arquitetado”, disse uma fonte da CNN que supervisiona as doações de quatro organizações humanitárias diferentes em uma das rotas de trânsito. Mais de 15 mil toneladas de suprimentos de ajuda aguardam a aprovação israelense para entrar em Gaza, disse a fonte. Mais da metade consiste em alimentos.

“Você pode receber autorização da COGAT, chegar e encontrar a polícia ou funcionários das finanças e da alfândega que enviarão o caminhão de volta”, disse outro funcionário humanitário sênior..

“Embora haja uma guerra em Gaza, estamos travando uma guerra diferente aqui”, disse um trabalhador humanitário na passagem de Rafah, no Egito, com Gaza. “É uma guerra para levar ajuda humanitária a Gaza”.

Assim, sob tal ângulo, a função da COGAT é sabotar e adiar a entrada da ajuda humanitária.

“AJUDA MÍNIMA”, DECRETA NETANYAHU

Sobre a escala da obstrução à ajuda humanitária, a CNN registra que, em uma imagem de satélite de 21 de fevereiro, é possível ver “uma fila de caminhões se estendendo por 6,4 quilômetros a partir da passagem” na fronteira do Egito para Gaza.

Embora argumente que os critérios de liberação da ajuda são “deliberadamente opacos e ambíguos”, a CNN também reproduz a declaração do primeiro-ministro israelense, em uma conferência de imprensa em 13 de janeiro, de que “fornecemos ajuda humanitária mínima”. “Se quisermos atingir os nossos objetivos de guerra, daremos ajuda mínima”.

Outra autoincriminação por perpetração de genocídio? De limpeza étnica?

“NUNCA VIMOS ALGO PARECIDO”

Quanto à fachada usada para levar isso a cabo, o presidente e chefe executivo da Save the Children nos EUA, Janti Soeripto, disse que “nunca vimos nada parecido” a esse “nível de barreiras criadas para dificultar a assistência humanitária”.

Ele citou a que ponto chega a insanidade para barrar a ajuda: “brinquedos foram barrados porque estavam em uma caixa de madeira em vez de uma caixa de papelão, sacos de dormir foram negados porque tinham zíperes e absorventes higiênicos foram devolvidos porque um cortador de unhas estava incluído no kit de higiene”.

Em janeiro, em visita a Gaza, dois senadores norte-americanos, Chris Van Hollen e Jeff Merkley, viram kits de maternidade e sistemas de filtragem de água entre os artigos que Israel devolveu do seu ponto de inspeção em Nitzana. “Em nenhum mundo racional poderiam (esses itens) ser considerados de dupla utilização ou qualquer tipo de ameaça militar”, disse Van Hollen.

Mas não era essa propriamente a principal denúncia de Van Hollen. “Aprendemos que quando um caminhão com apenas um desses itens é recusado, todo o caminhão retorna e tem que voltar ao início do processo, o que pode levar semanas”.

“Conversamos com chefes de organizações de ajuda internacional que trabalham em conflitos em todo o mundo há décadas”, acrescentou o senador. “Eles disseram que nunca tinham visto um sistema mais fragmentado de inspeção”.

RECUSA DE ANESTÉSICOS E AMPUTAÇÕES

A CNN também registrou o significado, para a população em estado de desastre humanitário, da recusa de itens tão básicos quanto anestésicos e máquinas de anestesia. Mais de 1 mil crianças foram submetidas a amputações de pernas em Gaza, conforme a Unicef, citou a CNN, acrescentando que “algumas sem anestesia”.

Um médico, Hani Bseiso, amputou a perna da sua sobrinha de 17 anos com uma faca de cozinha em sua casa, usando apenas as roupas do corpo para estancar o sangramento e sabão para limpar as feridas, relatou a CNN.

“Um míssil tanque israelense a atingiu quando ela estava no sexto andar do nosso prédio”, disse Bseiso à emissora. “Eu não sabia o que fazer. Não tinha anestesia nem qualquer tipo de medicamento”.

“Não houve anestesia. A minha anestesia foi o Alcorão que eu estava recitando”, disse mais tarde a sobrinha, Ahed Bseiso, a um jornalista que trabalhava para a CNN em Gaza. A amputação, realizada na mesa de jantar do tio, foi filmada e amplamente divulgada nas redes sociais.

“Ele trouxe a faca de cozinha e cortou minha perna com ela. E naquele momento eu disse: louvado seja Deus. Porque ele me trouxe paciência”.

Outro testemunho é do cirurgião britânico-palestino Dr. Ghassan Abu-Sittah, da sua clínica em Londres, dois meses depois de voltar de Gaza. “No final dos meus 43 dias em Gaza, tínhamos ficado sem anestesia e estávamos fazendo procedimentos sem qualquer anestesia”. “Estávamos tendo que fazer procedimentos de limpeza extremamente dolorosos para impedir infecções de feridas em crianças sem anestésico e sem analgésico”.

Na ausência de suprimentos médicos apropriados, Abu-Sittah inventou uma solução para combater infecções: sabão em pó misturado com vinagre e soro fisiológico.

“Eu derramava isso sobre a ferida e esfregava a ferida”, disse Abu-Sittah à CNN. “Foi provavelmente o momento mais sombrio da minha vida. A criança estava gritando. O pai estava chorando e você está tentando bloquear tudo isso e fazer isso o mais rápido possível. Mas sabendo que se você não tivesse feito isso, aquela criança estaria morta até o final do dia”.

Outra fonte humanitária dentro de Gaza disse que no início de fevereiro testemunhou uma criança de seis anos com queimaduras cobrindo 40% do seu corpo. Ela estava em um hospital em Rafah, o centro populacional mais bem abastecido de Gaza, onde os médicos só podiam dar aspirina para aliviar a sua agonia.

Outra mulher, Um Adel, disse que a sua neta morreu devido à falta de oxigênio em um hospital na cidade de Khan Younis, no sul de Gaza.

“Estávamos em Khan Younis. Não conseguíamos dormir durante o dia nem à noite por causa dos bombardeios”, disse ela a outro jornalista que trabalha para a CNN em Gaza. “Minha neta morreu porque estava doente e não havia oxigênio nem nenhum tipo de medicamento para ela. Que a sua alma descanse em paz”.

SEM CANETAS DE INSULINA

A CNN também registra que durante semana a COGAT impediu temporariamente a entrada em Gaza de canetas de insulina para crianças com diabetes, de acordo com o Coordenador Humanitário da ONU para a Palestina, Jamie McGoldrick, e uma outra fonte.

“No que diz respeito aos produtos que estão sendo proibidos, é uma gama completa”, disse McGoldrick em conferência de imprensa em 24 de janeiro. “Parte disso é material médico, como medicamentos básicos e material para tratar não apenas traumas, mas também doenças crônicas. Um exemplo seriam, mais recentemente, as canetas usadas para insulina em crianças”, acrescentou.

“Em termos de justificativa, realmente não consigo explicar porque não sei. Esses são produtos essenciais para enfrentarmos a emergência que atualmente se desenrola de uma forma muito dramática”.

220 CADEIRAS DE RODAS NEGADAS POR ISRAEL

A CNN também entrevistou o diretor de programas e planejamento da Organização de Caridade Hachemita da Jordânia (JHCO, na sigla em inglês), Marwan al-Hennawy, e descreveu que as caixas empilhadas de donativos estendem-se por cerca de 13 quilômetros, um atraso que exigiria cerca de mil caminhões para serem entregues.

Ele abriu uma caixa de alimentos para mostrar o que deveria chegar às pessoas em Gaza, com arroz, caldo de galinha, atum e tâmaras. O suficiente para alimentar uma família de cinco pessoas durante duas semanas.

Atrás dele estão dezenas de cadeiras de rodas embrulhadas em plástico empoeirado, registra a emissora norte-americana. “Temos 220 cadeiras de rodas e temos tentado colocá-las desde o início da guerra”, disse ele à CNN durante uma rara visita aos armazéns de ajuda destinada a Gaza.

Al-Hennawy examina o mar de caixas ao seu redor. “É doloroso olhar em volta e ver tudo isso”, diz ele. “Eu sinto que estou preso. Sei que os habitantes de Gaza precisam desesperadamente dessa ajuda, mas não consigo fazê-la chegar até eles. É como um pesadelo”.

Fonte: Papiro