Portela, a “campeã moral” do Carnaval 2024
Nem sempre a escola vencedora do Carnaval é a que faz história. Em 1989, no Rio de Janeiro, deu Imperatriz Leopoldinense com o ótimo enredo Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós. Mas a imagem icônica daquele desfile foi a do Cristo Mendigo, da Beija-Flor.
A Arquidiocese do Rio conseguiu uma liminar para impedir sua exibição no Sambódromo. O genial Joãosinho Trinta cobriu a estátua com sacos de lixo preto e a levou à Marquês de Sapucaí com uma placa: “Mesmo proibido, olhai por nós”. Se a Imperatriz foi a campeã do Carnaval, a Beija-Flor foi a “campeã moral”, para usar a expressão criada por Cláudio Coutinho, técnico da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1978.
Há desfiles que transbordam um sambódromo, vão além do universo do Carnaval e deixam uma espécie de legado. Neste Carnaval 2024, o título conferido à Viradouro parece em boas mãos. Mas a escola vencedora não foi necessariamente a que mais provocou ruídos e debates.
A “campeã moral” deste ano foi a centenária Portela, que, como a Viradouro, falou das raízes negras. Seu enredo se inspirou no romance histórico Um Defeito de Cor (2006), de Ana Maria Gonçalves. O livro, por sua vez, foi inspirado na saga da revolucionária negra Luísa Mahin.
A história de Mahin reúne fatos e mitos. O único registro já encontrado sobre sua vida é a carta autobiográfica que Luiz Gama escreveu a Lúcio de Mendonça em 25 de julho de 1880. Primeiro intelectual negro do Brasil, Gama (1830-1882) identifica Mahin como sua mãe e líder da Revolta do Malês (1835), que assombrou Salvador (BA) e foi a maior rebelião negra de que se tem notícia no Brasil. Perseguida pelo Império, Mahin teria fugido para o Rio de Janeiro, então capital federal, onde desapareceu.
A protagonista de Um Defeito de Cor, Kehinde, é um alter ego de Luísa Mahin. Já idosa e cega, em estágio terminal, a ex-escrava decide viajar da África para o Brasil, a fim de procurar o filho do qual está separada por muitas décadas. Temendo morrer antes que o navio atraque no Rio, ela relata suas memórias a uma companheira de viagem. As lembranças incluem os traumas da diáspora, os anos de escravidão, as insurreições, a religiosidade – enfim, a vida de uma negra africana escravizada, alforriada e perseguida no Brasil no século 18.
“O samba-enredo não é exatamente uma adaptação do livro. É uma conversa com a história que está sendo contada no livro, adaptada para uma realidade que a gente vive no País até hoje”, disse Ana Maria Gonçalves à Agência Brasil. “Vai ser uma grande homenagem às mães negras, principalmente àquelas que, por vários motivos, não puderam criar seus filhos – algo que a gente vê desde a escravidão.”
A adaptação de um romance para o cinema ou para a TV costuma turbinar suas vendas. Não deixa de ser uma espécie de relançamento do livro, que passa a entrar no radar de mais leitores, mesmo que a versão não fique à altura do original. No caso de Um Defeito de Cor, nunca houve adaptações do tipo. Mas, como Ana Maria Gonçalves, além de talentosa, é uma mulher de sorte, sua obra ganhou um segundo momento de redescoberta.
A primeira foi em maio de 2019, quando Lula, ainda preso injustamente, citou o livro numa carta ao 5º Salão do Livro Político: “Nestes 13 meses de quase solidão – não fossem as visitas de parentes e amigos e o carinho da incansável vigília na porta do cárcere em Curitiba –, tenho lido muitos livros. Cavalguei com Riobaldo e Diadorim pelas veredas do grande sertão de Guimarães Rosa. Cruzei o Atlântico em navio negreiro ao lado de Luísa Mahin, no extraordinário romance ‘Um Defeito de Cor’, de Ana Maria Gonçalves”.
A segunda redescoberta de Um Defeito de Cor foi na terça-feira (13). Desde os primeiros minutos do desfile da Portela no Sambódromo do Rio, ainda de madrugada, a procura pelo romance começou a crescer na Amazon. Segundo a Record, que publicou o livro, as vendas cresceram dez vezes nesta semana e obrigaram a editora a fazer uma reimpressão às pressas. Em menos de 24 horas, Um Defeito de Cor já era o mais vendido no site, ultrapassando uma obra de autoajuda religiosa, Café com Deus Pai, de Junior Rostirola. Aleluia!
“A literatura ganha por conseguir formar um público leitor que a gente não alcançaria se não fosse através do samba, da música e do carnaval”, resumiu Ana Maria. “O Carnaval ganha com a possibilidade de renovação das histórias que vêm contando, principalmente, ao trazer histórias como a do livro Um Defeito de Cor, que falam do povo negro do Brasil.”
Foi graças à quinta colocada Portela – e não à campeã Viradouro – que o interesse pela história e pela cultura negra no Brasil ganhou um importante impulso neste Carnaval. A escola azul e branco de Madureira, a “majestade do samba”, detentora de 22 títulos no Rio de Janeiro, pode estar desapontada com a apuração das notas do desfile, mas conseguiu um feito sem precedentes. É mais do que campeã moral.