Cartaz chama a manifestação diante do Tribunal onde extradição de Assange será julgada | Foto: National Union of Journalists

Esta semana, o jornalista a quem o mundo deve a exposição dos arquivos dos crimes de guerra dos EUA no Iraque e Afeganistão e da tortura em Guantánamo, Julian Assange, fundador do WikiLeaks, buscará obter de um painel de dois juízes da Suprema Corte britânica o direito de apelar da iníqua sentença que o condenou à extradição para os EUA, sob a acusação infame de espionagem, e sujeito a uma pena de 175 anos, e provavelmente, à morte, em um dos mais sórdidos cárceres do planeta, depois de ter a sentença carimbada pelo “tribunal da CIA” na Virgínia.

A audiência será na terça-feira (20) e quarta-feira (21) e, se negado, não haverá mais recursos dentro do sistema legal britânico, como advertiu o premiado jornalista norte-americano Chris Hedges. Apenas restaria uma suspensão da execução por “circunstâncias excepcionais” sob a regra 39 da Corte Europeia dos Direitos Humanos, mas ainda assim a Suprema Corte britânica teria de concordar. E poderia, simplesmente, “ordenar a extradição imediata de Assange”.

Como destacou Hedges, o “crime” de Julian é ter publicado documentos classificados, mensagens internas, relatórios e vídeos do governo e do exército dos EUA em 2010, fornecidos pela denunciante do exército dos EUA Chelsea Manning.

“Este vasto tesouro de material revelou massacres de civis, tortura, assassinatos, a lista de detidos na Baía de Guantánamo e as condições a que foram submetidos, bem como as Regras de Engajamento no Iraque. Aqueles que cometeram esses crimes — incluindo os pilotos de helicóptero dos EUA que mataram dois jornalistas da Reuters e outros 10 civis e feriram gravemente duas crianças, todos capturados no vídeo “Assassinato Colateral” — nunca foram processados.”

A perseguição de Julian é uma mensagem sinistra para o restante de nós, reitera Hedges. “Desafie o império dos EUA, exponha seus crimes e, não importa quem você seja, de que país você venha, onde você viva, você será caçado e levado aos EUA para passar o resto de sua vida em um dos sistemas prisionais mais severos da Terra.”

Se Julian for considerado culpado – ele advertiu -, isso significará “a morte do jornalismo investigativo sobre o funcionamento interno do poder estatal. Possuir e, pior ainda, publicar material classificado — como eu fiz quando era repórter do The New York Times — será criminalizado”.

O que foi entendido pelo The New York Times, Der Spiegel, Le Monde, El País e The Guardian, que emitiram “uma carta conjunta pedindo aos EUA para retirarem as acusações contra ele”.

Hedges assinalou que o primeiro-ministro australiano Anthony Albanese e o parlamento se pronunciaram na quinta-feira passada pedindo o fim do processo contra Assange e sua libertação, para que Assange “possa voltar para casa com sua família na Austrália”.

ESCÁRNIO AO DIREITO E À JUSTIÇA

O caso todo é, sublinha Hedges, um escárnio contra o direito e a justiça. “Como podem as audiências prosseguirem quando a empresa de segurança espanhola na Embaixada Equatoriana, UC Global, onde Julian buscou refúgio por sete anos, forneceu vigilância por vídeo de reuniões entre Julian e seus advogados à CIA, aniquilando o privilégio advogado-cliente? Isso por si só deveria ter feito com que o caso fosse arquivado”.

“Como o governo equatoriano liderado por Lenin Moreno pode violar o direito internacional rescindindo o status de asilo de Julian e permitir que a Polícia Metropolitana de Londres entre na Embaixada Equatoriana — território soberano do Equador — para levar Julian a uma van da polícia esperando?”

“Por que os tribunais aceitaram a acusação da promotoria de que Julian não é um jornalista legítimo?”

“Por que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha ignoraram o Artigo 4 de seu Tratado de Extradição que proíbe a extradição por crimes políticos?”

“Como o caso contra Julian pode prosseguir depois que a testemunha-chave para os Estados Unidos, Sigurdur Thordarson – um fraudador e pedófilo condenado – admitiu ter fabricado as acusações que fez contra Julian?”

“Como Julian, um cidadão australiano, pode ser acusado sob a Lei de Espionagem dos EUA quando não praticou espionagem e não estava baseado nos EUA quando recebeu os documentos vazados?”

CIA PLANEJOU SEQUESTRÁ-LO E ASSASSINÁ-LO

“Por que os tribunais britânicos estão permitindo que Julian seja extraditado para os EUA quando a CIA — além de colocar Julian sob vigilância por vídeo e digital 24 horas por dia enquanto ele estava na Embaixada Equatoriana — considerou sequestrá-lo e assassiná-lo, planos que incluíam um tiroteio potencial nas ruas de Londres com envolvimento da Polícia Metropolitana?”

“Como Julian pode ser condenado como editor quando não, como Daniel Ellsberg fez, obteve e vazou os documentos classificados que publicou?”

“Por que o governo dos EUA não está acusando o editor do The New York Times ou do The Guardian de espionagem por publicar o mesmo material vazado em parceria com o WikiLeaks?”

“Por que Julian está sendo mantido em isolamento em uma prisão de segurança máxima sem julgamento por quase cinco anos quando sua única violação técnica da lei é violar as condições de fiança quando buscou asilo na Embaixada Equatoriana? Normalmente, isso implicaria em uma multa.”

“Por que a ele foi negada fiança depois de ser enviado para o presídio de segurança máxima de Belmarsh?”

LINCHAMENTO EM ‘TRIBUNAL DA CIA’

Para Hedges, o que espera Assange nos EUA é um linchamento judicial.

“Sua defesa será dificultada pelas leis antiterrorismo dos EUA, incluindo a Lei de Espionagem e as Medidas Administrativas Especiais (SAMs). Ele continuará sendo impedido de falar com o público — exceto em raras ocasiões — e de ser libertado sob fiança. Ele será julgado no Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Leste da Virgínia, onde a maioria dos casos de espionagem foram ganhos pelo governo dos EUA.”

“O fato de que o júri é selecionado em grande parte dentre aqueles que trabalham para ou têm amigos e parentes que trabalham para a CIA e outras agências de segurança nacional que têm sede não muito longe do tribunal, sem dúvida contribui para essa série de decisões judiciais.”

Hedges denunciou, ainda, que os tribunais britânicos, desde o início, tornaram o caso notoriamente difícil de cobrir, limitando severamente os assentos no tribunal, fornecendo links de vídeo falhos e, “no caso da audiência desta semana, proibindo qualquer pessoa fora da Inglaterra e do País de Gales, incluindo jornalistas que haviam coberto anteriormente as audiências, de acessar um link para o que deveriam ser procedimentos públicos”.

O veterano jornalista norte-americano manifestou suas dúvidas sobre se a corte britânica permitirá  passar o caso para a Corte Europeia de Direitos Humanos, “dado que o braço parlamentar do Conselho da Europa, que criou o CEDH, junto com seu Comissário de Direitos Humanos, se opõem à ‘detenção, extradição e acusação’ de Julian porque representa ‘um precedente perigoso para os jornalistas’.

Hedges também indaga se a corte britânica atenderá ao pedido de Assange para estar presente na audiência, ou ele será obrigado a permanecer na assim chamada ‘Guantánamo britânica’, como também aconteceu antes?

RISCO SUBSTANCIAL DE MORTE

Hedges destaca que Assange chegara a ser salvo da extradição em janeiro de 2021, quando a juíza de distrito Vanessa Baraitser no Tribunal de Magistrados de Westminster se recusou a autorizar o pedido de extradição, por acreditar haver um “risco substancial” de que Julian se suicidasse devido à gravidade das condições que ele enfrentaria no sistema prisional dos EUA. No entanto, Baraitser havia aceitado todas as alegações dos EUA e rejeitado os argumentos de que seu caso era politicamente motivado, que ele não teria um julgamento justo nos EUA e que sua acusação é um ataque à liberdade de imprensa.

Decisão que foi depois revertida após o governo dos EUA recorrer à Suprema Corte de Londres, que aceitou quatro promessas feitas por Washington, apresentadas em fevereiro de 2021, de que Assange seria “bem tratado” e que supostamente “respondem completamente às preocupações que levaram o juiz [no tribunal inferior] a absolver o Sr. Assange”.

Já a Anistia Internacional, que comece de perto a excelência do sistema prisional norte-americano, um dos mais opressivos do planeta, disse que as “garantias não valem o papel em que estão escritas”. Todas promessas devidamente acopladas a “cláusulas de escape” e “não juridicamente vinculativas” – além de poderem, posteriormente, a critério de Washington, serem mudadas.

Os advogados de Julian tentarão convencer os dois juízes a conceder permissão para ele apelar de uma série de argumentos contra a extradição que a juíza Baraitser rejeitou em janeiro de 2021.

Caso o recurso for concedido, os advogados poderão argumentar que processar Julian por sua atividade jornalística representa uma “violação grave” de seu direito à liberdade de expressão; que Julian está sendo processado por suas opiniões políticas, algo que o tratado de extradição Reino Unido-EUA não permite; que Julian está sendo acusado de “puros crimes políticos” e o tratado de extradição Reino Unido-EUA proíbe a extradição sob tais circunstâncias; que Julian não deve ser extraditado para enfrentar julgamento onde a Lei de Espionagem “está sendo estendida de uma maneira sem precedentes e imprevisível”; que as acusações poderiam ser alteradas, resultando em que Julian enfrente a pena de morte; e que Julian não tiver um julgamento justo nos EUA. Eles também estão pedindo o direito de introduzir novas evidências sobre os planos da CIA de sequestrar e assassinar Julian.

CIA E SEU VAULT 7

A decisão de pedir a extradição de Julian, que chegou a ser considerada pelo governo Obama, ganhou tração no governo Trump após o WikiLeaks publicar os documentos chamados de Vault 7, expondo os programas de ciberguerra e sabotagem da CIA, “incluindo aqueles projetados para monitorar e assumir o controle de carros, smart TVs, navegadores da web e os sistemas operacionais da maioria dos smartphones” e um sistema de gerar falsas pistas digitais para incriminar outros sobre atos cometidos pela CIA.

Na perseguição a Assange confluíram Mike Pompeo, então chefe da CIA, e a liderança democrata, após, durante a campanha eleitoral de 2016, o WikiLeaks ter exposto a podridão da candidatura de Hillary Clinton e as manipulações para deter candidaturas alternativas, divulgando os emails do chefe do Diretório Nacional Democrata, Podesta. Entre os quais as transcrições de “três palestras privadas que Clinton deu ao Goldman Sachs — pelos quais ela foi paga US$ 675.000 — uma quantia tão grande que só pode ser considerada uma propina”. Também promessas aos executivos de Wall Street que contradiziam o que dizia na campanha sobre reforma financeira. Também a “estratégia” de Hillary de usar seu peso na mídia para influenciar as eleições primárias republicanas, “elevando” o que chamavam de “candidatos mais extremos”, para garantir que Trump ou Ted Cruz ganhassem a indicação do partido deles. Os emails também expuseram Clinton como uma das arquitetas da guerra e destruição da Líbia, uma guerra que ela acreditava que realçaria suas credenciais como candidata presidencial.

A liderança democrata, que tentou culpar a Rússia por sua derrota eleitoral para Trump — no que ficou conhecido como Russiagate — acusou que os emails de Podesta e os vazamentos do DNC foram obtidos por hackers do governo russo, embora uma investigação liderada por Robert Mueller, ex-diretor do FBI, “não tenha revelado evidências suficientes e admissíveis de que o WikiLeaks sabia — ou mesmo que foi deliberadamente cego — para qualquer suposto hacking pelo estado russo.

HERDEIRO DE DANIEL ELLSBERG

“Julian é perseguido porque ele forneceu ao público as informações mais importantes sobre os crimes e as mentiras do governo dos EUA desde a publicação dos Documentos do Pentágono. Como todos os grandes jornalistas, ele era apartidário. Seu alvo era o poder”, destacou Hedges.

“Ele tornou público o assassinato de quase 700 civis que se aproximaram demais dos comboios e postos de controle dos EUA, incluindo mulheres grávidas, cegas e surdas e de pelo menos 30 crianças.”

“Ele tornou público os mais de 15.000 mortes não relatadas de civis iraquianos e a tortura e abuso de cerca de 800 homens e meninos, com idades entre 14 e 89 anos, no campo de detenção da Baía de Guantánamo.”

“Ele nos mostrou que Hillary Clinton, em 2009, ordenou que diplomatas dos EUA espionassem o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon e outros representantes da ONU da China, França, Rússia e Reino Unido, espionagem que incluía a obtenção de DNA, scans de íris, impressões digitais e senhas pessoais.”

“Ele expôs que Obama, Hillary Clinton e a CIA apoiaram o golpe militar de junho de 2009 em Honduras que derrubou o presidente democraticamente eleito Manuel Zelaya, substituindo-o por um regime militar corrupto e assassino.”

“Ele revelou que os Estados Unidos lançaram secretamente ataques de mísseis, bombas e drones no Iêmen, matando dezenas de civis.”

“Nenhum outro jornalista contemporâneo chegou perto de igualar suas revelações”, concluiu Hedges, ressaltando que “Julian é o primeiro” e “nós somos os próximos”.

“SE EXTRADITADO, ELE VAI MORRER”

Na semana passada, a esposa de Assange, Stella, disse em uma coletiva de imprensa alertou que se trata da “audiência final”, se não for concedido a apelação a Julian, “não há possibilidade de apelar para a Suprema Corte ou qualquer outro lugar nesta jurisdição”.

Ela disse ainda que a situação é “extremamente grave”, já que sua saúde continua “em declínio”. Ela alertou: “Se ele for extraditado, vai morrer”.

O jornal The Guardian revelou que autoridades dos EUA chantagearam jornalistas que trabalharam com Assange, tentando fazer com que se voltassem contra ele.

Pelo menos quatro jornalistas conhecidos foram abordados pela polícia metropolitana em nome do FBI: James Ball, seu ex-colega do WikiLeaks, que agora está no Bureau of Investigative Journalism; David Leigh, ex-jornalista do Guardian e do Observer; Heather Brooke, ativista pela liberdade de informação; e Andrew O’Hagan, que havia sido contratado para a autobiografia de Assange.

Todos eles se recusaram a cooperar com o FBI. Em um artigo para a Rolling Stone no ano passado, Ball disse que foi abordado pela primeira vez em 2021 e submetido a pressões, incluindo a ameaça de ser processado.

O’Hagan disse que, embora tivesse suas diferenças com Assange, ficaria feliz em ir para a prisão em vez de ajudar o FBI. “Eu só acrescentaria que a tentativa de punir Assange por expor a verdade é um ataque ao próprio jornalismo. Percebo que nenhum dos principais colaboradores que publicaram seu material – o New York Times, o Guardian e a Der Spiegel – está sendo perseguido, o que demonstra que um viés geracional contra o jornalismo baseado na internet está no centro do caso… Se Julian for para os EUA, o Reino Unido terá falhado em proteger um dos primeiros princípios da democracia.”

NENHUM JORNALISTA SEGURO

O editor-chefe do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, advertiu sobre o que extradição implicaria para o futuro da liberdade de imprensa. “Não se pode subestimar o efeito que terá. Se um cidadão australiano que publica na Europa pode enfrentar pena de prisão nos Estados Unidos, isso significa que nenhum jornalista em qualquer lugar está seguro no futuro.”

Personalidades, como o cineasta Oliver Stone e a entidade Repórteres Sem Fronteiras, divulgaram postagens pela libertação imediata de Assange.

Também a Anistia Internacional, que enfatizou: “o risco para editores e jornalistas investigativos em todo o mundo está na balança. Se Julian Assange for enviado para os EUA e processado lá, as liberdades globais de mídia também serão julgadas”, disse em comunicado.

Fonte: Papiro