Sahra Wagenknecht lidera o novo partido alemão | Foto: John Macdougall/AFP

O cerne da questão para a formação de um novo partido de esquerda alemão é a atitude em relação à guerra por procuração da Otan na Ucrânia, afirmaram ao historiador e escritor indiano Vijay Prashad as fundadoras da nova agremiação, e ex-integrantes do Die Linke, Sahra Wagenknecht e Sevim Dağdelen. Prashad é diretor do Instituto de Pesquisa Tricontinental, que debate as alternativas para o progresso no mundo.

Em outubro do ano passado, dez deputados deixaram o Die Linke e a nova agremiação foi lançada no início de janeiro de 2024, liderada por Wagenknecht e Amira Mohamed Ali, com o nome de Aliança Sahra Wagenknecht pela Razão e Justiça (BSW, na sigla em alemão).

Foi Wagenknecht – que o jornal de direita Bild gosta de chamar de Sara Vermelha – e seus seguidores que organizaram em fevereiro do ano passado uma manifestação contra a guerra no Portão de Brandemburgo, em Berlim, que reuniu 30.000 pessoas.

Protesto que se seguiu à publicação de um “manifesto da paz”, escrito por Wagenknecht e pela escritora feminista Alice Schwarzer, já assinado por mais de um milhão de pessoas.

Existe na Alemanha “uma profunda divisão” entre um governo – liderado pelo social-democrata Olaf Scholz – ansioso para continuar a guerra na Ucrânia, e uma população que “quer que esta guerra acabe e que seu governo enfrente a grave crise da inflação”, apontaram as duas deputadas do BSW a Prashad.

Inflação que, como se sabe, é a contrapartida das sanções decretadas desde Washington e da renúncia, pela Alemanha, ao gás russo barato em prol do GNL norte-americano caro, insanidade que está prostrando e desindustrializando o país.

FALÊNCIA POLÍTICA DIANTE DA GUERRA

O Die Linke, elas assinalaram, simplesmente não se manifestou fortemente contra o apoio ocidental à guerra na Ucrânia e não articulou uma resposta ao desespero da população, o que facilitou o deslocamento de parte do seu eleitorado para os braços da AfD.

Ao contrário, em 2022, o único primeiro-ministro estadual do Die Linke, da Turíngia, Bodo Ramelow, defendeu em entrevista ao jornal Süddeutsche Zeitung que o governo federal deveria fornecer tanques à Ucrânia.

“Se você defende a guerra econômica autodestrutiva contra a Rússia que está empurrando milhões de pessoas na Alemanha para a penúria e causando uma redistribuição ascendente da riqueza, então você não pode defender com credibilidade a justiça social e a seguridade social”, disse Wagenknecht.

Se defendermos políticas energéticas irracionais, como a introdução de energia russa mais cara através da Índia ou da Bélgica, enquanto fazemos campanha para não reabrir os gasodutos com a Rússia em busca de energia barata, então as pessoas simplesmente não acreditarão que defenderíamos os milhões de trabalhadores cujos empregos estão em perigo como resultado do colapso de indústrias inteiras provocado pelo aumento dos preços da energia, ela sublinhou.

O índice de aprovação de Scholz está agora em 17% e, a menos que seu governo seja capaz de resolver os problemas urgentes gerados pela guerra da Ucrânia, é improvável que ele consiga reverter essa imagem.

SABUGICE

Em vez de tentar pressionar por um cessar-fogo e negociações na Ucrânia, a coalizão de Scholz formada pelos social-democratas, verdes e democratas livres, disse Dağdelen, “está tentando comprometer o povo da Alemanha com uma guerra global ao lado dos Estados Unidos em pelo menos três frentes: na Ucrânia, no Leste Asiático com Taiwan e no Oriente Médio ao lado de Israel”.

Sobre o atual governo alemão diz muito o pronunciamento no Cairo, em outubro passado, da ministra das Relações Exteriores, a verde Annalena Baerbock, contra um cessar-fogo humanitário em Gaza.

Em outra expressão do nível de divergência no interior do Die Linke, quando Wagenknecht chamou Gaza de “prisão a céu aberto”, em outubro de 2023, o líder da bancada do partido, Dietmar Bartsch, disse que “se distanciou fortemente” dela.

Como registrou Prashad, a expressão “prisão ao ar livre” para descrever Gaza é amplamente usada, inclusive por Francesca Albanese, relatora especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967.

CONTRA A GUERRA

 “Temos que apontar o que está acontecendo aqui”, disse Dağdelen. É nosso dever – ela acrescentou – organizar a resistência a este colapso da postura anti-guerra do Die Linke. “Rejeitamos o envolvimento da Alemanha nas guerras por procuração dos EUA e da OTAN na Ucrânia, no Leste Asiático e no Oriente Médio”.

A manifestação no Portão de Bradenburgo encabeçada por Wagenknecht foi noticiada pelo Washington Post sob o título “Kremlin tenta construir coligação antiguerra na Alemanha”. A maior parte dos que compareceram ao comício e os que assinaram o manifesto são dos “campos centrista, liberal e de esquerda”, disse Dağdelen. Todos, menos a extrema-direita, foram bem-vindos ao comício.

Seu antigo partido – Die Linke – tentou obstruir a manifestação e os demonizou por mantê-lo. Difamar protestos pela paz – apontou a deputada – tem como objetivo afastar as pessoas e, ao mesmo tempo, mobilizar apoio a políticas governamentais repugnantes, como o fornecimento de armas ao regime de Kiev.

POBREZA GLOBAL E IMIGRAÇÃO

Sobre a imigração, Wagenknecht disse ao historiador que apoia o direito ao asilo político e que as pessoas que fogem da guerra devem receber proteção. Mas, enfatizou, o problema da pobreza global não pode ser resolvido com a migração, mas com políticas econômicas sólidas e o fim das sanções a países como a Síria.

Uma verdadeira esquerda, disse ela, deve atender ao chamado de alarme das comunidades que pedem o fim da imigração e seu deslocamento para a AfD, de extrema direita. “Ao contrário da liderança do Die Linke”, disse Wagenknecht.

Não se deve – ela insistiu – descartar os eleitores da AfD e simplesmente assistir ao crescimento da ameaça da extrema-direita na Alemanha. Queremos reconquistar os eleitores que foram para a AfD por frustração e em protesto contra a falta de uma oposição real que fale pelas comunidades, ela acrescentou.

DEFESA DOS DIREITOS

O partido trabalhará com as comunidades para entender por que elas estão frustradas e como sua frustração contra os imigrantes é muitas vezes uma frustração mais ampla com cortes no bem-estar social, cortes no financiamento da educação e da saúde e o que é visto como inação em relação à migração econômica.

“É revelador”, disse ela, “que os ataques mais duros contra nós vêm da extrema direita”. Eles não querem, aponta ela, que o novo partido desloque o debate de um foco restrito anti-imigração para uma política em defesa dos direitos da classe trabalhadora.

Como observou o historiador e comentarista turco Tarik Cyril Amar, o fato de Wagenknecht “ter um pai persa e de os membros proeminentes da BSW serem também alemães não étnicos dá-lhe uma forte posição de partida para este tipo de debate e protege os seus argumentos de serem descartados como racistas ou xenófobos”.

O novo partido também se diferencia daquilo que Wagenknecht chama de “esquerdistas de estilo de vida” e suas “lutas simbólica” sobre termos hipersensíveis, tão na moda entre eles. Em suma, do identitarismo desvairado.

PESQUISA ALVISSAREIRA

A última pesquisa – encomendada pelo jornal Bild e realizada por um importante instituto de pesquisas poucos dias após a fundação do partido – mostrou que 14% dos alemães votariam em BSW em uma eleição federal.

Em comparação, o SPD, tradicionalmente um dos principais partidos da Alemanha e casa política do chanceler Olaf Scholz, também obteve 14%. Para BSW, este é um índice de aprovação impressionante, mas para o SPD, é catastrófico.

Enquanto isso, os Verdes, parceiros da coalizão de governo de Berlim – o chamado “semáforo” – estão com 12%. Os liberal-democratas, a terceira facção no “Semáforo”, não conseguiria nenhum assento no Bundestag porque não ultrapassa o obstáculo eleitoral de 5% dos votos, enquanto o antigo partido de Sahra Wagenknecht, Die Linke, provavelmente sofreria o mesmo destino.

 Os dois únicos partidos que se sairiam melhor do que o BSW na pesquisa são a tradicional CDU, de centro-direita, com 27%, e a AfD, com 18%.

AGRICULTORES

Diante dos protestos contra o diesel caro e outras mazelas que afligem o campo, Wagenknecht já manifestou seu apoio e até exigiu de Scholz que peça desculpas aos agricultores, enquanto a mídia tenta retratá-los como servos dos extremistas e joguetes da Rússia.

O cada vez mais sitiado ministro da Economia, Robert Habeck, – registrou Cyril Amar – chegou a atribuir a “Putin” a deflagração dos protestos dos agricultores – sem, é claro, fornecer qualquer prova que sustente sua alegação.

Em outra frente, Wagenknecht se pronunciou contra o fornecimento de mísseis de cruzeiro alemães à Ucrânia – “a mais recente demanda dos insaciáveis viciados em ‘armas milagrosas’”, segundo o historiador, para quem a reivindicação de uma transição da política de confronto militar para uma política de negociação e compromisso faz todo o sentido.

Cyril Amar também observa que, sob outro aspecto, essa reorientação da política alemã faz todo sentido e vaticina que os dias do neoliberalismo desenfreado e do “macartismo” estão chegando ao fim.

Afinal, “a Alemanha é tão dependente dos Estados Unidos no momento que não é tratada apenas como um vassalo, mas como um vassalo cujos desejos e interesses não importam mais. Mesmo os alemães que desconfiam da Rússia compreenderão que este estado de coisas é fundamentalmente errado. No seu próprio interesse nacional, a Alemanha precisa restabelecer um certo equilíbrio, redefinindo e reconstruindo as suas relações com a Rússia”.

Fonte: Papiro