Juíza Joan Donoghue preside a Corte Internacional de Justiça | Foto: Remko Waal/AFP

Em uma decisão inédita, a Corte Internacional de Justiça da ONU em Haia acatou nesta sexta-feira (26) a denúncia da África do Sul de violação por Israel na Faixa de Gaza da Convenção das Nações Unidas sobre o Genocídio, negou a Israel seu pedido de arquivamento do processo e, em caráter urgente, determinou que Israel aja para prevenir e punir o incitamento ao genocídio, garanta que suas tropas não cometam genocídio, preserve as eventuais evidências de genocídio e reporte sobre todas as ocorrências à CIJ (que enviará e receberá informações da parte querelante, a África do Sul) e exige ainda que Israel garanta a ajuda humanitária e os serviços básicos cuja ausência coloca em risco a população palestina mantida sob cerco.

Na decisão de 29 páginas, lida pela juíza presidente, a norte-americana Joan Donoghue, a Corte de Haia determinou que há evidências suficientes para sustentar uma acusação de genocídio e enquadrar as ações de Israel nas disposições da Convenção do Genocídio e, através de sua leitura da decisão, a Corte se declarou competente para decidir sobre medidas emergenciais no caso dos ataques de Israel à Faixa de Gaza, ainda que não tenha estabelecido a urgência de um cessar-fogo, conforme havia sido pedido pela África do Sul.

A decisão não é a palavra final do tribunal sobre se as ações de Israel equivaleram a genocídio – decisão que pode demorar anos -, mas fornece um forte indício de que os juízes acreditam que há um risco crível para os palestinos sob a Convenção de Genocídio.

A adoção de medidas urgentes foi acolhida por uma ampla maioria do painel de 17 juízes da Corte de Haia (15 a favor, 2 contra, incluindo o juiz indicado por Israel).

Na véspera, porta-voz do governo israelense dissera esperar que o principal tribunal da ONU “rejeite essas acusações espúrias e especiosas”. A decisão criou obrigações legais internacionais para Israel e disse que todas as partes na Faixa de Gaza estão vinculadas ao direito internacional.

“VITÓRIA PARA O ESTADO DE DIREITO INTERNACIONAL”

A Corte determinou também que Israel, dentro de um mês, preste conta das medidas tomadas. Os aplausos irromperam entre os apoiadores pró-Palestina que se reuniram em frente à CIJ, em Haia, quando o tribunal decidiu que Israel deve “tomar todas as medidas ao seu alcance” para impedir todos os atos dentro do escopo da Convenção sobre Genocídio, apesar da frustração quanto ao cessar-fogo.

Para obter medidas temporárias, o que a África do Sul precisava provar é que o tribunal tem jurisdição à primeira vista, ou “prima facie”, e que alguns dos atos de que se queixa – neste caso, incluindo o número de mortos e o deslocamento forçado de palestinos em Gaza – podem se enquadrar na Convenção sobre Genocídio.

A África do Sul saudou a decisão da CIJ como uma “vitória decisiva” para o Estado de Direito Internacional e disse que continuará a agir dentro das instituições de governança global para proteger os direitos dos palestinos em Gaza e agradeceu ao tribunal por sua rápida decisão.

“Hoje marca uma vitória decisiva para o Estado de Direito internacional e um marco significativo na busca de justiça para o povo palestino”, disse Pretória. “A África do Sul sinceramente espera que Israel não aja para frustrar a aplicação desta ordem, como tem publicamente ameaçado fazer, mas que ao invés agirá para cumpri-la integralmente, como está obrigada a fazer”.

Decisão da CIJ é um “lembrete importante de que nenhum Estado está acima da lei”, sublinhou o Ministério das Relações Exteriores palestino. “Os juízes da CIJ avaliaram os fatos e a lei, decidiram a favor da humanidade e do Direito Internacional”, afirmou Riyad al-Maliki, ministro das Relações Exteriores palestino, em um discurso televisionado na sexta-feira.

Ele acrescentou que a Palestina pediu a todos os Estados que garantam que as medidas ordenadas pelo tribunal sejam implementadas “incluindo por Israel, a potência ocupante”.

Sami Abu Zuhri, um alto funcionário do Hamas, disse à Reuters que a decisão da CIJ é um desenvolvimento importante que contribui para isolar Israel e expor seus crimes em Gaza. Ele também pediu que Israel seja forçado a implementar as decisões do tribunal.

Já Benjamin Netanyahu, que no início do mês havia dito que “ninguém vai nos parar, nem Haia”, reagiu à decisão da CIJ prometendo continuar “a defender a nós mesmos e aos nossos cidadãos, respeitando o direito internacional”.

Ele também chamou o morticínio em Gaza e o deslocamento da população palestina de “uma guerra justa como nenhuma outra”. Usando de sua manjada empáfia, disse ainda que a disposição da CIJ de discutir alegações de genocídio contra Israel é “uma vergonha que não será apagada por gerações”.

NO BANCO DOS RÉUS

A presidente da CIJ, juíza Joan Donoghue, afirmou que o tribunal está “plenamente consciente” da extensão da tragédia humana na Faixa de Gaza e que há evidências suficientes para sustentar uma acusação de genocídio e enquadrar as ações de Israel nas disposições da Convenção do Genocídio. “O tribunal considera que não pode acatar o pedido de Israel para que o caso seja removido da lista geral”, sublinhou.

Donoghue mencionou ainda “baixas maciças” e “extensa destruição” de infraestrutura em Gaza e disse que isso resultou no “deslocamento da esmagadora maioria da população em Gaza”.

A presidente da CIJ também registrou a “linguagem desumanizante” usada contra os palestinos e disse que o tribunal tomou nota de uma série de declarações feitas por altos funcionários israelenses, chamando atenção principalmente para as falas do Ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, que ordenou um “cerco completo” a Gaza e disse que suas tropas lutavam contra “animais humanos” – um dos pontos centrais da argumentação da África do Sul. Também a declaração do presidente de Israel, Isaac Herzog, de que “é uma nação inteira lá fora [isto é, todos os palestinos, não apenas o Hamas] que é responsável”.

“O tribunal considera que a população civil na Faixa de Gaza continua extremamente vulnerável. Recorda que a operação militar conduzida por Israel após 7 de outubro de 2023 resultou, nomeadamente, em dezenas de milhares de mortos e feridos e na destruição de casas, escolas, instalações médicas e outras infraestruturas vitais, bem como deslocações em grande escala. O tribunal observa que a operação está em andamento e que o primeiro-ministro de Israel anunciou em 18 de janeiro de 2024 que a guerra, cito, ‘levará muitos meses mais longos’”.

Ao negar a Israel o pedido de arquivamento do processo, a Corte de Haia determinou ainda que este deve “tomar todas as medidas ao seu alcance para evitar” matar palestinos, causar-lhes sérios danos corporais ou mentais, infligir deliberadamente condições de vida calculadas para provocar a destruição física no todo ou em parte do grupo palestino e impor medidas destinadas a impedir o nascimento de palestinos.

“O tribunal também é da opinião de que Israel deve tomar medidas dentro de seu poder para prevenir e punir a incitação direta e pública a cometer genocídio em relação aos membros dos grupos palestinos na Faixa de Gaza”, disse ela.

“O tribunal considera ainda que Israel deve tomar medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos e assistência humanitária urgentemente necessários para enfrentar as condições adversas de vida enfrentadas pelos palestinos na Faixa de Gaza.”

A Corte de Haia também se pronunciou “seriamente preocupado” com o destino dos reféns sequestrados de Israel em 7 de outubro “e pediu sua “libertação imediata e incondicional”.

“NUNCA MAIS PARA TODOS”

Falando nas escadarias da sede da CIJ, Naledi Pandor, ministra das Relações Internacionais da África do Sul, disse a repórteres que Israel terá que interromper os combates em Gaza se quiser cumprir as ordens do tribunal superior da ONU.

“Como fornecer ajuda e água sem cessar-fogo?”, ela disse. “Se você ler a ordem, por implicação um cessar-fogo deve acontecer.”

Em resposta a uma pergunta sobre se estava desapontada por a decisão não ordenar um cessar-fogo, Pandor disse que não se diria decepcionada, mas reconheceu que gostaria que a palavra “cessar [fogo]” fosse incluída.

“Minha esperança é que comecemos a avançar para um processo em que substantivamente uma solução de dois Estados esteja sendo discutida”, acrescentou.

“É um divisor de águas para todos aqueles que querem ver a paz na Palestina”, disse em Pretória Fikile Mbalula, secretária-geral do Congresso Nacional Africano, o partido de Mandela, que derrotou o apartheid e estabeleceu a democracia na África do Sul, no poder.

“FOME CATASTRÓFICA”

A decisão da Corte de Haia chega em um momento em que a ONU denuncia que um quarto da população de Gaza enfrenta uma “fome catastrófica”, enquanto já são 26 mil os palestinos mortos, a maioria crianças e mulheres, 1% da população, mais 62 mil feridos e 7 mil desaparecidos. 90% da população foi forçada pelas bombas israelenses se deslocarem e deixarem suas casas, em grande parte já em escombros. Os ataques sequer poupam o pessoal médico, jornalistas ou funcionários da ONU, nem hospitais, escolas da ONU, universidades, padarias e mesquitas. Já dura quase quatro meses o cerco total, que cortou a água, comida, remédios, eletricidade e combustível.

A convenção sobre genocídio de 1948, promulgada após os massacres perpetrados pelos nazistas contra soviéticos, judeus, poloneses e outros povos, define como “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Como dizem os manifestantes judeus norte-americanos ao repudiarem nas ruas o que acontece hoje em Gaza, “nunca mais” é “nunca mais para todos”.

Fonte: Papiro