Trabalhadores chegam para manifestação contra ataques de Milei aos direitos | Foto: Página 12

A Argentina vai parar nesta quarta-feira (24), a partir de meio dia, por convocação das centrais sindicais, para repudiar o plano Motosserra do fascista Milei e seus Decreto Nacional de Emergência (DNU) 70/2023 e ‘Lei Ônibus’, cujo objetivo é fazer a Argentina retroceder um século em direitos trabalhistas e sociais, arrochar salários e aposentadorias, privatizar a rodo, criminalizar os protestos e agravar o quadro econômico e social, de forma a justificar a pretendida dolarização da economia e transformação do país virtualmente em uma colônia dos fundos abutres e dos bancos norte-americanos.

Os servidores públicos anunciaram que vão começar a paralisação a partir de zero hora. Governadores e prefeitos de oposição, artistas, personalidades, entidades da juventude e de aposentados, movimentos ‘piqueteiros’ e as Mães da Praça de Maio anunciaram sua participação na greve geral.

A greve geral foi convocada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT), com a adesão das duas CTA (Central dos Trabalhadores Argentinos) e da Associação dos Trabalhadores no Estado Nacional (ATE, servidores públicos).

Mais de 1,5 mil personalidades argentinas divulgaram um documento em que classificam o DNU – que é uma espécie de medida provisória emergencial – de Milei como “ilegal e ilegítimo”, e denunciam que “atenta contra os trabalhadores do setor privado, os trabalhadores do setor público, os consumidores e usuários, os inquilinos, os esportistas, os industriais, os comerciantes, trabalhadores e trabalhadoras da cultura, além de colocar em grave risco a soberania nacional e a preservação do ambiente”.

O documento também acusa “ex-funcionários do frustrado governo Macri e do fracassado governo de Fernando De La Rúa” – aquele que fugiu de helicóptero da Casa Rosada em 2001 de terem elaborado o famigerado plano de ajuste de Milei.

A DNU tem cerca de 300 disposições, sobre quase tudo, até clubes de futebol e alterações ao código penal, enquanto a ‘Lei das Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos’ logo foi apelidada de “Lei Ônibus”, por ter nada menos que 664 medidas, depois um pouco alterada para 523, e ambas mal escondem a intenção ditatorial do fascista Milei.

O que fica claro no artigo da ‘Lei Ônibus’ que estabelecia a declaração de “emergência pública em questões econômicas, financeiras, fiscais, previdenciárias, de segurança, de defesa, tarifárias, energéticas, de saúde, administrativas e sociais” até 31 de dezembro de 2025, ou seja, metade do mandato de Milei, com possibilidade de prorrogação por mais dois anos, o que abrangeria toda a sua gestão.

Em suma, a pretexto da “emergência”, Milei poderia ignorar completamente o Congresso, governar praticamente por decreto e promulgar leis em praticamente todas as áreas.

Como resumiu o líder da bancada peronista, deputado German Martinez: Martinez: “Por que querem poderes absolutos? Para governar sem Congresso e que o ajuste recaia sobre os aposentados”.

Ao contrário da DNU, que pela legislação argentina, pode ser empurrada com a barriga por muito tempo, a ‘Lei Ônibus’ depende de votação no parlamento, onde Milei é inteiramente minoritário e depende dos votos macristas e da boa vontade da “oposição que dialoga”, composta por radicais [alfonsinistas] e peronistas desgarrados. Milei também chantageia governadores, cortando repasses para as províncias.

Entre as violações que passaram a valer desde já, está o fim da lei de aluguéis, o fim da regulação para o comércio ou planos de saúde, a eliminação da política de controle de preços previsto na Lei de Abastecimento, assim como de restrições às exportações (que visavam priorizar o mercado interno), o que foi acompanhado por uma brutal desvalorização do peso frente ao dólar, reduzindo brutalmente o poder aquisitivo de trabalhadores e aposentados. E, em paralelo, ataques sem precedentes aos direitos trabalhistas adquiridos, corte de subsídios, facilitação das demissões e todo tipo de “desregulamentação”. A DNU estabelece o alargamento do período de experiência de três para 8 meses; limita o  direito de greve e facilita demissões; arrocha salários e faz expirar cláusulas que já vigiam se não for renovado com um novo acordo.

No caso dos aposentados, está sendo imposto um novo mecanismo de reajuste que, segundo as entidades, levará a uma perda de 30% nas pensões em 2024, em relação a 2023 e, conforme o portal El Destape, poderá reduzir o gasto com a previdência em quase 1 ponto percentual do PIB.

Como denunciou o governador peronista da província de Buenos Aires, Alex Kicillof, Milei procura “revogar um conjunto de leis para privatizar, desregulamentar, destruir os direitos dos trabalhadores e arrasar setores inteiros da produção, rifar os times de futebol e o patrimônio dos argentinos”.

O secretário-geral da CGT, Héctor Daer, classificou a utilização da DNU para revogar leis e artigos de tamanha envergadura de profundamente “anti-republicana” e “antidemocrática”. “A estabilidade no emprego, os direitos laborais e o sistema de saúde são fortemente atacados”, apontou.

“DUAS ARGENTINAS”

Diante da reação popular contra seus desmandos, o presidente fascista disse que a greve iria mostrar que “existem duas Argentinas”: uma quer “ficar atrasada, no passado, na decadência, neste país que era o mais rico do mundo e é o 140º, onde temos 50% de pobres e 10% de indigentes” e outra que será “desenvolvida” no modelo motosserra

A modernidade, como ele expôs bizarramente em Davos, é desregulamentar, liberar o rentismo, e nem ter moeda própria, ser colônia do dólar, mas receber afagos de Elon Musk.  

O líder da CTA e deputado, Hugo Yasky, respondeu que “Milei se vê como um líder messiânico que vai fazer a Argentina voltar ao que era em 1905, um país onde os pobres não tinham direitos, onde eram anônimos e sofriam fome em silêncio, baixando a cabeça, e no qual os poucos que saíram para lutar foram ferozmente reprimidos”. Esse – ele acrescentou – é o país que Milei “acha que deve fundar novamente, por isso ele odeia o populismo, ou seja, odeia o peronismo.”

“Quer nos levar de volta ao moinho da fome e da perda de direitos, o que tantas vezes fizeram aqueles que ele reconhece como os grandes líderes deste país, Mauricio Macri, José Alfredo Martínez de Hoz, Domingo Cavallo, que já foram responsáveis ​​por outros fracassos, como voltará a ser”. Infelizmente, o preço da fome, do sofrimento, da penúria, será pago por outros.

O secretário-geral da Associação dos Trabalhadores do Estado, Rodolfo Aguiar, disse que Milei se engana “quando diz que a greve vai mostrar duas Argentinas. Só existe uma Argentina, o que a greve mostrará claramente é que existem dois modelos de países. Se algo vai começar a acontecer no dia 24 de janeiro é que o programa econômico que o governo nacional pretende implementar começa a ser votado nas ruas.”

“Não seremos apenas trabalhadores e aposentados, mas uma grande maioria que rejeitará este ajuste regressivo, que está sendo promovido a partir de Buenos Aires, mas que atinge rapidamente as províncias e todos os municípios”.

“PROTOCOLO ANTIPIQUETE”

A ex-ministra da Segurança de Macri, e atual titular no governo Milei, anunciou que usará o “protocolo antipiquete” – as novas regras de repressão à liberdade de manifestação e ao direito de greve – para deter a paralisação convocada pelas centrais argentinas, que chamou de “oligarquias que defendem seus interesses”. Ela prometeu travar “uma luta de vida ou morte” pela “ordem nas ruas”.

O governo Milei anunciou, ainda, que descontará o dia dos servidores públicos que aderirem à greve geral e até abriu uma linha telefônica para delação de quem convocar a greve.

O secretário-geral da ATE ironizou as ameaças. “O que vão fazer com o que vão descontar? Porque será muito dinheiro, a adesão será total. Vão entregar ao FMI, depositar na conta da [construtora] Techint ou pagarão ao Hotel Libertador?”, disse Aguiar, referindo-se ao hotel de luxo onde são realizadas reuniões com o empresariado amigo.

No último panelaço, o governo Milei afirmou que iria enviar cobrar de 14 entidades que convocaram o protesto em dezembro uma multa de 60 milhões de pesos (75 mil dólares) pelos gastos do governo com o aparato repressivo.

Já o líder da CGT, Pablo Moyano, dos caminhoneiros, alertou a Casa Rosada que “ninguém afugenta os trabalhadores com multas ou polícia”. Quanto ao dito ‘protocolo anti-piquetes’, Moyano disse que são apenas uma tentativa da ministra da Segurança de mostrar serviço aos “seus eleitores, as corporações que hoje governam o país”.

“Bullrich vai dar o show a que estamos acostumados. Ela vai querer tirar as pessoas das pontes, das rodovias”, acrescentou o sindicalista, que questionou se ia ter de colocar em “fila única” os 40 mil caminhoneiros que ia mobilizar.

Registre-se o empenho do governo Milei em criminalizar os protestos, como atestado na indecente cláusula da ‘Lei Ônibus’ de que quaisquer reuniões na rua com mais de três pessoas poderiam ser enquadradas legalmente, o que foi depois levemente remendado para “30”.

SOBERANIA CULTURAL

A Frente de Soberania Cultural, que congrega artistas e intelectuais argentinos, dirigiu uma carta ao congresso argentino exigindo a rejeição das duas leis de Milei e advertindo que “a cultura está em perigo”, assinada, entre outros, por Charly García, Fito Páez, León Gieco, Cecilia Roth, Graciela Borges e Leonardo Sbaraglia. A petição recebeu 20 mil assinaturas e foi publicada no jornal Página 12 no domingo.

“O Governo Nacional pretende, através da Lei Omnibus, revogar leis vitais para a sobrevivência das indústrias culturais, das artes e das ciências, e do patrimônio cultural do nosso país”, diz um dos fragmentos do texto, que conta com o apoio massivo de representantes da cultura nacional de todos os setores.

Ao final, o texto alerta: “Cultura é identidade. Cultura é a única coisa que não pode ser importada. Triste destino de não ser. É disso que se trata esta luta. Um país é tão grande ou tão pequeno quanto a medida do seu projeto cultural.”

AVÓS DA PRAÇA DE MAIO

A presidente da associação Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, pediu ao plenário de comissões do Congresso argentino que analisa a Lei ‘Ônibus’ sua rejeição e advertiu que, sob Milei, “a democracia está em perigo”.

Ela considerou “inaceitável que o Poder Executivo possa modificar um número sem precedentes de regulamentos que afetam os direitos essenciais dos argentinos” e chamou de “enorme retrocesso” ao projeto encaminhado pelo governo Milei.

“Pedimos que tenham memória para lembrar e medir o longo caminho que percorremos. É por meio das instituições, dos órgãos do Estado e de seus trabalhadores que os direitos são realizados. Direitos que só chegarão aos mais necessitados pela mão do Estado e não pelo mercado”, ela acrescentou.

Carlotto alertou que “a democracia está em perigo, pois o Poder Executivo não só busca modificar e suprimir leis, mas também arroga para si poderes que não lhe correspondem”. “Pedimos lembrança para lembrar que a concentração de poder e faculdades leva à tirania e à violência”, concluiu.

RESISTÊNCIA

Além das manifestações e do trabalho junto aos parlamentares para deter a enxurrada de leis anti-povo, as centrais e os governadores têm apelado ao poder judiciário e já obtiveram várias liminares favoráveis. Na mais recente delas, concedida aos bancários, foi suspensa a aplicação da reforma trabalhista. A CGT e a CTA já haviam obtido, também, liminares. Agora a justiça do Trabalho encaminhou a questão à Suprema Corte, que irá analisar após o fim do recesso de janeiro.

A Suprema Corte também havia, em 29 de dezembro de 2023, aceitado a ação impetrada pelo governo da província de Rioja contra o DNU, pedindo que fosse declarada sua “manifesta inconstitucionalidade”, que foi patrocinada pelo ex-membro do Tribunal Eugenio Zaffaroni e pelo constitucionalista Raúl Ferreyra.

A resistência de governadores, prefeitos e dirigentes sindicais e empresariais também levaram a alguns recuos do governo Milei, como no caso da pesca, hidrocarbonetos, biocombustíveis e vinhos. A estatal do petróleo YFP foi retirada da lista de privatização. Diante dos protestos de intelectuais e cineastas, não serão mais extintos o Fundo Nacional das Artes (Fonca), o Instituto Nacional de Ciências e Artes Audiovisuais (Incaa), o Instituto Nacional de Música (Inamu) e a Comissão Nacional de Bibliotecas Populares (Conabip), embora seu financiamento haja sido drasticamente cortado.

Fonte: Papiro