Ação de vingança após morte de policial foi batizada de "Operação Escudo" | Foto: SSP

A Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo denunciou a chacina de 10 pessoas por policiais durante a “Operação Escudo”, realizada em Guarujá, litoral paulista. As ações se iniciaram na sexta-feira (28) como uma vingança após o assassinato do PM Patrick Bastos Reis, soldado das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA).

Ao longo do fim de semana, a retaliação, batizada de “Operação Escudo”, contou com forte aparato de policiais de toda a Baixada Santista para cercar a cidade. Segundo o ouvidor da Polícia, Claudio Aparecido da Silva, os relatos de testemunhas apontam para ao menos 10 mortes de moradores de comunidades da cidade.

O ouvidor afirmou que moradores da cidade relataram torturas e execuções. Os agentes de segurança também teriam prometido matar 60 pessoas até que o assassino do policial fosse entregue.

“Estamos recebendo muitas denúncias de moradores aterrorizados, denúncias inclusive que há duas favelas sendo sitiadas pela polícia e que o comentário dos policiais é que eles vão matar 60 pessoas, há relatos de policiais invadindo casas usando máscaras”, disse o ouvidor Cláudio Aparecido da Silva. “Pessoas próximas a ele [o homem torturado] têm dito que ele tinha passagem criminal, mas não fugiu da favela exatamente porque ele foi para a Baixada Santista para trabalhar como ambulante, e que disse: ‘Não devo nada, não vou fugir, não estou envolvido’.”

“A Polícia Militar, ao que nos consta, tem dito que os policiais tenham atuado com câmeras corporais. Diante disso, vamos pedir essas imagens para que nada fique escondido nisso tudo e a gente possa verificar, através das imagens, se houve ou não ilegalidades nas ações da polícia naquele território”, disse Silva.

Em nota, a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo manifestou “preocupação com a situação vivida na área do Guarujá, marcada por intensificação da violência. Historicamente a região da baixada santista apresenta indicadores preocupantes do ponto de vista da segurança pública e da proteção de direitos, com altos índices de letalidade e vitimização policial”, diz a nota.

Claudio destacou que “as mortes violentas do soldado PM e dos civis são inaceitáveis”: “nada, nem nenhuma assimetria se justifica quando se clama por justiça e segurança para todos. Oportuno salientar que, a responsabilização dos envolvidos é necessária, como medida de justiça, nos termos da legislação brasileira”.

“Uma chacina está em curso na cidade”, relataram moradores em áudios enviados à imprensa.

“Eles [policiais da Rota] andam de capuz pelas vielas, estão matando primeiro para perguntar depois. Igual fizeram com um moleque que estava indo no mercado. O moleque gritava ‘pelo amor de Deus’, e bateram no menino, todo mundo ouviu aqui. Mataram o menino e levaram o celular dele. Menino inocente, isso não pode”, afirmou um morador em áudio enviado ao jornal Brasil de Fato.

Outro morador da região teve o primo assassinado na madrugada do último sábado (29) e afirmou que “a Rota sitiou a favela e já matou nove pessoas, inclusive um cara com um bebê de oito meses no colo.”

“Estou aqui no velório do meu primo, mas não tive nem coragem de ver o corpo dele ainda, os caras torturaram o moleque, queimaram ele de cigarro, forjaram ele, falando que ele tava com drogas e arma, mas ele não tinha nada”, acusou o morador.

Na noite de sexta-feira, vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes, 30, foi morto com nove tiros. Moradores da favela da Vila Baiana, próximo à praia da Enseada, dizem ter ouvido os gritos da sessão de tortura. A família encontrou queimaduras de cigarro, além de um ferimento na cabeça e um corte no braço.

Nunes saiu de casa por volta das 21h para comprar cigarros. Cerca de duas horas depois, vizinhos ouviram gritos e tiros, e seu corpo foi visto sendo colocado no porta-malas de uma viatura da PM. Ele informou à família que sairia devido a um aviso policial de que pessoas com passagem na polícia ou tatuagens seriam mortas. Nunes já tinha sido detido por roubo, mas estava vivendo como ambulante. Após sua morte, encontraram seu chinelo em um barraco na viela em que vivia com marcas de sangue pelo chão.

A família não foi autorizada a ver o corpo, e só puderam observar as marcas que de tortura quando o receberam para o velório.

A família afirma também que a última atividade em seu celular ocorreu às 0h16 de sábado. No entanto, o corpo sem vida teria sido visto na viatura policial por volta das 22h. Uma parente de Nunes disse que, na delegacia, informaram que nenhum celular ou chave do carro foram apreendidos, itens que a família notou estarem faltando.

De acordo com o boletim de ocorrência do caso, dois policiais da Rota estavam em uma operação na Vila Baiana quando avistaram um homem a pé, que mudou de direção ao vê-los. Segundo os policiais, ele teria levado a mão à cintura, como se fosse sacar uma arma, e entrado em um barraco na favela.

SUSPEITO SE ENTREGOU E PEDIU “FIM DA MATANÇA”

Erickson David da Silva, suspeito de matar o soldado da Rota Patrick Bastos Reis, gravou um vídeo antes de ser preso, pedindo para que o governo de São Paulo pare com a “matança” de inocentes. Ele se entregou na noite de domingo (30), na zona sul de São Paulo, mais de 100 quilômetros de distância de onde ocorria o cerco da polícia.

O suspeito é conhecido na região como “Deivinho” e gravou um vídeo antes de ser preso. “Quero falar para o Tarcísio e o Derrite [secretário de Segurança Pública] para de fazer a matança aí, matando uma pá de gente inocente, querendo pegar minha família, sendo que eu não tenho nada a ver. Estão me acusando aí. É o seguinte vou me entregar, não tem nada a ver”.

TARCÍSIO SE DISSE EXTREMAMENTE SATISFEITO

Em uma coletiva de imprensa, o governador Tarcísio de Freitas contradisse os dados da Ouvidoria, afirmando que o número de mortos era de apenas oito, enquanto outras 10 pessoas foram presas. Ele defendeu a ação dos policiais que resultou nas mortes e se disse “extremamente satisfeito” após a chacina.

Tarcísio considerou que não houve excesso da força policial na operação e elogiou a atuação dos agentes, classificando-a como uma “grande demonstração de profissionalismo”. Ainda sobre as prisões e confrontos, ele declarou que “não vamos deixar passar impune agressão a policial”, enfatizando a necessidade de a polícia reagir para repelir ameaças. Sobre as denúncias de tortura, o governador disse que “não passam de narrativas”.

“Todas (as ocorrências) serão investigadas. Não podemos permitir que a população seja usada e sucumbir às narrativas. Estamos enfrentando o tráfico de drogas e o crime organizado, e temos que ter consciência da dificuldade disso. Não houve hostilidade ou excesso, houve uma atuação profissional, que resultou em prisões, e vamos continuar com as operações”, disse Tarcísio que preferiu ignorar o ouvidor da polícia.

Na noite desta segunda-feira (31), a Polícia Civil do Guarujá confirmou a morte de outras duas pessoas. 

O coordenador do Instituto ‘Sou da Paz’, Rafael Rocha, criticou a atuação da polícia. “Me parece muito difícil considerar [bem-sucedida] uma operação que em três dias deixa 10 mortos, uma série de denúncias de violações, de tortura, de cadáveres, vítimas da atuação policial que foram removidas do local”.

Rocha ainda comparou a ação no Guarujá com as mortes registradas em comunidades do Rio de Janeiro. “A não ser que o sucesso for mensurado por uma revanche. Me parece muito mais um ‘operação vingança’, nos moldes que nos temos cada vez mais no Rio de Janeiro. Quando um policial é morto, depois policiais sobem morros e comunidades e deixam dezenas de mortos. Me parece que o que temos aqui é uma versão paulista desse fenômeno”.

O ministro dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Silvio Almeida, disse que acionou a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos para acompanhar as mortes em decorrência da operação policial que iniciou na sexta-feira (28) em Guarujá.

“Eu pedi hoje de manhã para que o ouvidor nacional dos Direitos Humanos entre em contato com as autoridades para que nós possamos entender o que de fato aconteceu. Ou seja, foi cometido um crime bárbaro contra um trabalhador que precisa ser apurado, mas nós não podemos usar isso como uma forma de agredir e violar os direitos humanos de outras pessoas”, afirmou o ministro.

“O Brasil precisa ser colocado dentro de uma régua. É preciso um limite para as coisas. Então eu acho que o limite para isso é respeito para os direitos humanos: seja para os agentes da segurança pública, seja da população dos territórios onde a polícia atua”, completou.

Fonte: Página 8