Parentes e amigos do cinegrafista Abudaqa em seu funeral | Foto: Reprodução

O cinegrafista Samer Abudaqa, foi ferido por ataque de drone israelense e deixado sangrando até morrer por cinco horas, com Israel recusando que o socorro médico chegasse até ele, apesar das súplicas desesperadas de jornalistas estrangeiros, da Al Jazeera e da Cruz Vermelha Internacional para salvar sua vida.

Como salientou no Democracy Now, o correspondente em Gaza, Sharif Abdel Kouddos, “neste caso em particular, não há dúvida de que os mais altos escalões das Forças de Defesa de Israel estavam cientes de que este jornalista estava ferido e precisava de cuidados médicos”.

Abudaqa acompanhava o chefe da sucursal da Al Jazeera em Gaza, Wael al Dahdouh, em uma reportagem, em Khan Younis, sobre os trabalhos de resgate em uma escola que fora bombardeada por Israel no início do dia. Al Dohdouh também foi ferido, mas conseguiu chegar a uma ambulância nas proximidades. “O mundo deveria estar indignado com este assassinato, com todos os assassinatos que estão acontecendo com jornalistas palestinos em Gaza”, disse Abdel Kouddous.

Um assassinato, como ele descreveu, cometido diante dos olhos do mundo, com um jornalista sendo ferido e impedido de receber atendimento médico por Israel e que sangrou até morrer.

“Wael al Dahdouh, o chefe do escritório da Al Jazeera em Gaza, e Samer Abudaqa, um jornalista veterano de 20 anos de profissão, cinegrafista, foram a essa escola em Khan Younis, que havia sido bombardeada no início do dia, acompanhados por uma equipe de funcionários da Defesa Civil. Essa equipe havia solicitado e recebido aprovação dos militares israelenses por meio da Cruz Vermelha para estar na área”.

“Eles chegaram lá por volta do meio-dia. Passaram cerca de duas horas e meia na área, de acordo com Wael al Dahdouh, e quando eles estavam encerrando sua cobertura, havia esses – ele disse que quase não havia ninguém na área – drones zumbindo por cima. Eles estavam prestes a sair e voltar para a ambulância que os trouxe até lá, quando um ataque os atingiu, por volta das 14h30”.

“Wael al Dahdouh foi jogado no chão. Ele disse que, quando se levantou e meio que recuperou a consciência, percebeu que estava sangrando bastante do braço e que sangraria até a morte se não recebesse atendimento médico. Ele olhou e viu que os três funcionários da Defesa Civil que os acompanhavam haviam sido mortos na hora.”

“E então, a uma pequena distância, viu seu colega, Samer Abudaqa, no chão. Ele havia sido ferido na parte inferior do corpo. Wael disse que parecia estar gritando – Wael naquele momento havia perdido muito de sua audição com a explosão – e que Samer não conseguia se levantar.”

“Wael percebeu que a única chance que os dois tinham era que ele chegasse ao atendimento médico e conseguisse ajuda para trazer Samer para fora, porque ele não conseguia se levantar. Então, Wael de alguma forma tropeçou por cerca de 800 metros até a ambulância que estava esperando”.

“Ele implorou para que eles entrassem e buscassem Samer, mas eles insistiram em evacuá-lo primeiro para um hospital em Khan Younis e que outra ambulância iria buscá-lo. Há vídeos de Wael al Dahdouh recebendo tratamento, piscando de dor, chamando as pessoas para irem buscar Samer, dizendo-lhes para coordenar com a Cruz Vermelha”. Uma ambulância – acrescentou Kouddos – foi imediatamente tentar recuperar Samer da área, mas foi alvejada pelas forças israelenses.

Ao mesmo tempo, o chefe do escritório da Al Jazeera em Ramallah, Walid al Omari, estava fazendo ligações para a Cruz Vermelha – isso é por volta das 15h, 15h30 – e pedindo à Cruz Vermelha que fizesse contato com o exército israelense para permitir que as equipes de emergência chegassem a Samer Abudaqa em Khan Younis.

Assim – sublinhou Kouddos -, “os militares israelenses sabiam, pelo menos por volta das 15h ou 15h30, que havia um jornalista ferido que estava desamparado e precisava ser evacuado”.

As notícias da situação dramática de Samer Abudaqa, chegaram em Jerusalém à Associação de Imprensa Estrangeira, que representa principalmente repórteres estrangeiros de mais de 30 países, e tem um grupo de WhatsApp, com cerca de 140 desses jornalistas.

“Um dos jornalistas, um repórter freelance e produtor baseado em Jerusalém chamado Orly Halpern, postou pouco depois das 15h sobre a situação do Samer e disse aos jornalistas, ou pediu a eles, que ligassem para porta-vozes militares israelenses e exigissem que Samer fosse evacuado. E assim, a FPA foi se envolvendo.”

Membros seniores da FPA, a Associação de Imprensa Estrangeira, estavam se envolvendo – acrescentou Kouddos -, “ligando para oficiais militares israelenses, porta-vozes militares israelenses, altos escalões, pedindo repetidamente a passagem de Samer”.

Conforme foi registrado no The Intercept, Kouddos obteve capturas de tela desse grupo de WhatsApp de vários jornalistas do grupo, e também de conversas com pessoas envolvidas nesses esforços, de que “por horas Israel não deu aval para essas ambulâncias”.

“Finalmente, depois de cerca de cinco horas depois que Samer foi inicialmente ferido, um trator foi finalmente aprovado para passar para alcançar Samer. Mas, àquela altura, ele já havia morrido. Ele havia sangrado. Ele foi encontrado com a jaqueta [de imprensa]; tentara rastejar e morreu. E foi incrivelmente trágico. Ele tinha jazido lá.”

“A Al Jazeera havia postado um contador ao vivo das horas e minutos desde que ele foi ferido em sua transmissão, e as pessoas estavam apenas assistindo. E acabou por morrer”, destacou Kouddos.

“No dia seguinte, a Al Jazeera anunciou que estava preparando um processo legal para apresentar ao Tribunal Penal Internacional sobre o que chamou de assassinato de Samer Abudaqa. E o mesmo aconteceu com os Repórteres Sem Fronteiras, que também incluiu seu assassinato em um documento ao TPI, crimes de guerra contra jornalistas mortos em Gaza. Então, você sabe, o mundo deveria estar indignado com esse assassinato, com todos os assassinatos que estão acontecendo com palestinos, jornalistas palestinos em Gaza.”

ALTOS MANDOS DE ISRAEL SABIAM

O co-apresentador do Democracy Now, Juan González, fez questão de salientar que “neste caso em particular, não há dúvida de que os mais altos escalões das Forças de Defesa de Israel estavam cientes de que este jornalista estava ferido e precisava de cuidados médicos.”

“Sim, temos vários jornalistas que contaram – temos capturas de tela de um grupo de WhatsApp onde eles estão discutindo ter falado com porta-vozes militares israelenses naquelas horas e dizendo: “Nenhuma aprovação ainda. Ambulâncias não liberadas. Bulldozers ainda não liberados”, reiterou Kouddos.

“Então, isso levou horas. E, você sabe, os militares israelenses devem ter sabido muito cedo qual é a situação. Foram eles que bombardearam repetidamente a área. Eles sabiam que havia entulho nas ruas. Há vigilância constante – quase constante de drones em Gaza”, acrescentou.

“A Cruz Vermelha, sabemos, estava em contato com os militares israelenses para tentar obter aprovação. E, no entanto, eles foram embora, ou simplesmente não permitiram – segundo alguns relatos, primeiro, ambulâncias foram alvejadas que tentaram chegar a Samer Abudaqa. Eles voltaram – trata-se do Crescente Vermelho Palestino e da Defesa Civil – e aguardavam então a aprovação. Eles também pediram que equipes da Cruz Vermelha os acompanhassem até a área como forma de proteção. E tudo isso estava acontecendo enquanto Samer Abudaqa jazia deitado desamparado. Os militares israelenses não dão permissão. Ele acabou por morrer.”

Amy se referiu, ainda, a que o filho de Wael al Dahdouh, Hamza al-Dahdouh, também jornalista da Al Jazeera, foi morto depois em um ataque de drone israelense, junto com o jornalista da AFP Mustafa Thuraya.

Encerrando, Kouddos se referiu à duplicidade de padrões predominantes nos EUA e Europa diante das mortes de jornalistas palestinos perpetradas por Israel, lembrando a citação especial do Conselho Pulitzer aos “jornalistas da Ucrânia” e seu esforço “para fornecer uma imagem precisa de uma realidade terrível”. “Duvido que os jornalistas palestinos de Gaza recebam tal deferência. E é aí que mora o problema”.

Em outro segmento do Democracy Now, Amy Goodman debateu com Sherif Mansour, coordenador para o Oriente Médio e Norte da África do Comitê para a Proteção dos Jornalistas, a situação em Gaza. Ela assinalou que o chefe do escritório da Al Jazeera, Wael al Dahdouh, deixou Gaza na terça-feira (17), cruzando para o Egito, depois voando para o Catar para receber tratamento médico.

“Dahdouh passou a simbolizar o sofrimento e a resiliência dos jornalistas palestinos em Gaza. Em outubro, quatro membros de sua família foram mortos, incluindo sua esposa, seu filho de 15 anos, sua filha de 7 anos e seu neto, em um ataque israelense a um campo de refugiados onde buscavam abrigo depois que sua casa foi bombardeada. Na semana passada, seu filho mais velho, Hamza, de 27 anos, também jornalista, foi morto junto com outro jornalista em um ataque aéreo israelense contra seu carro em Khan Younis. Dahdouh receberá tratamento médico em Doha por um ferimento que recebeu quando Israel bombardeou a área em que estava e que acabou matando seu colega cinegrafista Samer Abudaqa.”

MAIS DE 110 JORNALISTAS MORTOS EM GAZA

Como destacou Amy, “mais de 110 jornalistas foram mortos em Gaza desde 7 de outubro. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas descobriu que mais jornalistas foram mortos nas primeiras 10 semanas da guerra de Israel em Gaza do que jamais foram mortos em um único país durante um ano inteiro”.

“Quando discutimos a Al Jazeera e a família de al Dahdouh, eles realmente estão reescrevendo o que significa ser jornalista hoje, com imensos, corajosos e sacrifícios nunca antes vistos”, concordou Mansour. “Os jornalistas palestinos, jornalistas locais – até agora, 76 dos 83 que contamos desde o início da guerra são palestinos. A esmagadora maioria é morta pelo exército israelita. O exército israelense matou mais jornalistas nesses três meses do que qualquer outra entidade ou exército fez ao longo de um ano, desde 1992. Este é o mais perigoso e o mais – nunca vimos nenhuma tarefa como essa antes.”

“INVESTIGAÇÃO INDEPENDENTE JÁ”

“O que pedimos é uma investigação independente, transparente e exaustiva”, enfatizou o dirigente do Comitê de Proteção aos Jornalistas, entidade com sede em Nova York e que existe desde os anos 1980. “Queremos que o caso de al Dahdouh, do seu filho, da Al Jazeera e de outros que mostram uma culpabilidade do exército israelense seja submetido a escrutínio público, permitindo a entrada imediata de meios de comunicação social internacionais e investigadores internacionais em Gaza sem censura por parte do exército israelense.

“A matança [de jornalistas] tem de acabar”, reiterou Mansour. “E para que isso aconteça, o registro deve ser tornado público, e os EUA, a Europa e outros aliados de Israel precisam chamar Israel sobre esse registro e garantir que essas investigações sejam tornadas imediatamente públicas.”

O co-apresentador González perguntou a Mansour qual tem sido a resposta do governo israelense e das Forças de Defesa israelenses, dado o enorme número de jornalistas mortos e se aceitaram alguma culpa por algum desses assassinatos.

Mansour disse que os ataques de drones contra a Al Jazeera aconteceram pelo menos duas vezes nas últimas quatro semanas e pela primeira vez o exército israelense assumiu a responsabilidade por tais ataques, dizendo que iria “investigar”. Ao mesmo tempo em que promove narrativas falsas, alegações de fogo cruzado com terroristas, narrativas que vão sendo sucessivamente remendadas, à medida que surgem testemunhas oculares e os familiares rechaçam as alegações israelenses.

CRIMES DE GUERRA ACINTOSOS

González lembrou que a Anistia Internacional e a Human Rights Watch estão pedindo que Israel seja oficialmente investigado por crimes de guerra e seu alvo contra jornalistas, “não apenas em Gaza, mas fora de Gaza, porque uma investigação interna da Reuters descobriu que um de seus jornalistas, Issam Abdallah, foi morto por um tanque israelense disparando contra ele e um grupo de outros seis jornalistas no sul do Líbano em 13 de outubro. Você poderia falar sobre esses ataques fora de Gaza?”

“O caso de Issam Abdallah mostra, com investigação independente, provas físicas, provas forenses do local, além de mapeamento, análise áudio e visual por grupos internacionais de direitos humanos e organizações internacionais de mídia, que mostram que esses jornalistas não representavam nenhuma ameaça às posições do governo israelense, que foram vistos por um drone israelense pelo menos uma hora, que eles estavam visivelmente expressando ou mostrando sinais de imprensa e apenas suas câmeras, e a posição que eles tomaram foi uma colina de alto nível que não obscurecia sua localização ou coisa que justificasse que eles seriam ameaça”.

“E todas essas e outras evidências mostraram que o que mostramos no passado – nos casos de pelo menos três jornalistas que categorizamos como assassinados antes deste curso, incluindo Shireen Abu Akleh e Yaser Murtaja e Ahmed Abu Hassin, que foram mortos em Gaza -, que não havia justificativa para o uso de força letal pelo exército israelense. É por esses e outros casos que pedimos uma investigação independente como crimes de guerra, porque o exército israelense não cumpriu seus compromissos e obrigações sob o direito internacional”, concluiu o dirigente do Comitê de Proteção aos Jornalistas.

Fonte: Papiro