Escombros de um prédio de Kibutz israelense e a dúvida: que tipo de arma causou destruição desse porte? | Foto: AFP

Relatos de israelenses sobreviventes do 7 de outubro, que vieram à tona, estão crescentemente chamando a atenção por contraditarem a narrativa oficial do governo de Israel sobre o ataque do Hamas a bases e assentamentos israelenses no entorno de Gaza, como apontaram o premiado jornalista britânico Jonathan Cook e o editor do portal norte-americano Grayzone, Max Blumenthal, ambos usando fontes israelenses que vêm sendo ignoradas por boa parte da mídia global.

Fontes como o principal jornal israelense, o Haaretz, e o Yedioth Aharanoth; a Rádio Israel; e os portais de internet israelense i24, Mako e South Responders. Entre as testemunhas israelenses, o responsável pela segurança de um kibutz, Tuval Escapa; uma sobrevivente do festival-rave, Yasmin Porat; e pilotos de helicópteros Apache israelenses apenas identificados como tenente-coronéis ‘E’ e ‘A’.

Cook, que por 20 anos morou em Nazaré, em Israel, e contribui regularmente para alguns dos principais jornais e sites do mundo, dedicou recentemente um artigo sobre “o que a BBC não diz sobre o 7 de outubro”, em que criticou como “má prática jornalística” papaguear “de forma tão crédula” o relato do regime Netanyahu sobre esse dia.

As evidências contam uma “história muito mais complexa do que a apresentada à noite na BBC”, ele sublinhou, fazendo menção a relatos de mídias israelenses, testemunhas oculares e uma série de pistas visuais da própria cena do crime.

As perguntas que Cook faz são: “os militares israelitas dispararam contra as casas civis controladas pelo Hamas da mesma forma que dispararam contra as suas próprias bases militares e com o mesmo desrespeito pela segurança dos israelenses no seu interior? O objetivo, em cada caso, era evitar a todo custo que o Hamas tomasse reféns cuja libertação exigiria um preço muito alto de Israel?”

O KIBUTZ BE’ERI

Interrogações feitas em reação a recente matéria da BBC, assinada por Lucy Williamson, sobre visita dela ao Kibutz Be’eri, nos arredores de Gaza, atacado em 7 de outubro. Como mostrado tantas vezes – assinalou Cook – “as casas israelenses estavam cheias de fogo automático, tanto por dentro quanto por fora. Seções de muro de concreto tinham buracos ou haviam desabado totalmente. E partes dos edifícios que ainda estavam de pé estavam profundamente carbonizados”.

Parecia – ele observou – um pequeno retrato dos horrores atuais em Gaza.

Para Cook, há uma possível razão para essas semelhanças – “que a BBC está estudiosamente deixando de relatar, apesar das evidências crescentes de uma variedade de fontes, incluindo a mídia israelense” e se apegando “resolutamente a uma narrativa criada para eles, e para o resto da mídia ocidental, pelos militares israelenses: a de que o Hamas sozinho causou toda essa destruição.”

“Apenas uma olhada superficial nos destroços nas várias comunidades de kibutz que foram atacadas naquele dia deve levantar questões na mente de qualquer bom repórter. Estariam os militantes palestinos em condições de infligir danos físicos nesse grau e extensão com o tipo de armas ligeiras que transportavam?”

“E se não, quem mais estava em posição de causar tamanho estrago além de Israel?”

Blumenthal, por sua vez, escreveu que “as evidências crescentes de ordens de fogo amigo emitidas pelos comandantes do exército israelense sugerem fortemente que pelo menos algumas das imagens mais chocantes de cadáveres israelenses carbonizados, casas israelenses reduzidas a escombros e cascos queimados de veículos apresentados à mídia ocidental eram, na verdade, o trabalho de tripulações de tanques e pilotos de helicóptero israelenses cobrindo o território israelense com fogo de canhão e mísseis Hellfire”.

DOIS TESTEMUNHOS

Cook observou que nenhuma dessas reportagens destacou comentários feitos ao jornal israelense Haaretz por Tuval Escapa, coordenador de segurança do kibutz. Ele disse que os comandantes militares israelenses ordenaram o “bombardeio de casas contra seus ocupantes para eliminar os terroristas junto com os reféns”.

O que ecoou o depoimento da israelense Yasmin Porat, que buscou abrigo em Be’eri, vinda do festival-rave nas proximidades. “Ela disse à Rádio Israel que, assim que as forças especiais israelenses chegaram, ‘eliminaram todos, incluindo os reféns, porque havia fogo cruzado muito, muito pesado’”.

“Depois de um fogo cruzado insano”, continuou Porat, “dois projéteis de tanques foram disparados contra a casa. É uma pequena casa de kibutz, nada grande.”

Também é dela o relato de que os integrantes do Hamas “não abusaram de nós. Fomos tratados com muita humanidade… Ninguém nos tratou de forma violenta.” Ela acrescentou: “O objetivo era nos sequestrar para Gaza, não nos assassinar”.

INCINERADOS LADO A LADO?

“As imagens de corpos carbonizados apresentadas por Williamson, acompanhadas de um aviso de sua natureza gráfica e perturbadora, são provas incontestáveis de que o Hamas se comportou como monstros, inclinado ao tipo mais distorcido de vingança?”, questionou Cook.

Ou – alternativamente – esses restos enegrecidos podem ser “evidências de que civis israelenses e combatentes do Hamas queimaram lado a lado, depois de terem sido engolidos pelas chamas causadas pelos bombardeios israelenses contra as casas?”

Para Cook, Israel não concordará jamais com uma investigação independente, pelo que nunca será dada uma resposta definitiva. Mas – acrescentou – isso não exime os meios de comunicação do seu dever profissional e moral de serem “cautelosos”.

De acordo com Haaretz – o registro é de Blumental -, o exército israelense só foi capaz de restaurar o controle sobre Be’eri depois de reconhecidamente “bombardear” as casas dos israelenses que haviam sido feitos cativos.

“O preço foi terrível: pelo menos 112 moradores de Be’eri foram mortos”, relatou o jornal israelense. Outros foram sequestrados. 11 dias após o massacre, os corpos de uma mãe e de seu filho foram encontrados em uma das casas destruídas. “Acredita-se que mais corpos ainda estejam nos escombros.”

De acordo com o i24, “pequenas e pitorescas casas [foram] bombardeadas ou destruídas” em Be’eri e “gramados bem conservados [foram] rasgados pelos rastros de um veículo blindado, talvez um tanque [israelense]”.

A DIRETRIZ HANNIBAL

Para tentar entender o que aconteceu nos kibutzin tomados pelo Hamas, é importante descobrir como o governo Netanyahu e os militares israelenses reagiram ao ataque surpresa.

Para Cook e Blumenthal, a decisão foi aplicar a chamada “diretriz Hannibal” – em poucas palavras – bombardear seus próprios soldados, para evitar que fossem capturados e usados como moeda de troca, como já ocorreu outras vezes, por presos palestinos.

Esse procedimento militar foi estabelecido em 1986 após o Acordo de Jibril, no qual Israel trocou 1150 prisioneiros palestinos por três soldados israelenses. Na sequência, os militares israelenses elaboraram uma ordem de campo sigilosa para evitar futuros sequestros, que recebeu o nome do general cartaginês que optou por se envenenar em vez de ser mantido em cativeiro pelo inimigo.

A última aplicação confirmada da Diretriz Hannibal – segundo Blumenthal – ocorreu em 1º de agosto de 2014 em Rafah, Gaza, quando combatentes do Hamas capturaram um oficial israelense, o tenente Hadar Goldin, levando os militares a desencadear mais de 2000 bombas, mísseis e projéteis na área, matando o soldado junto com mais de 100 civis palestinos

A aplicação agora dessa diretriz parece emergir dos vários relatos disponíveis nos meios de comunicação israelense sobre o 7 de outubro, que também não têm como ocultar que os contra-ataques  foram executados quase em estado de choque e, para alguns, possivelmente histeria.

Segundo o Haaretz, o exército israelense foi “obrigado a solicitar um ataque aéreo” contra as suas próprias instalações dentro da passagem de Erez para Gaza “a fim de repelir os terroristas” que tinham tomado o controle. “Essa base estava cheia de oficiais e soldados da Administração Civil israelense na época.”

FOGO AMIGO

A Passagem de Erez é o lar de uma enorme instalação militar, que funciona como o centro nervoso do cerco de Israel a Gaza. De acordo com Haaretz, o comandante da Divisão de Gaza, brigadeiro-general Avi Rosenfeld, “entrincheirou-se na sala de guerra subterrânea da divisão junto com um punhado de soldados homens e mulheres, tentando desesperadamente resgatar e organizar o setor sob ataque. Muitos dos soldados, a maioria deles não pessoal de combate, foram mortos ou feridos do lado de fora. A divisão foi obrigada a solicitar um ataque aéreo contra a própria base para repelir os terroristas.”

Na avaliação de Cook, os helicópteros israelenses parecem ter disparado indiscriminadamente, apesar do risco representado para os soldados israelenses na base que ainda estavam vivos. A ação de Israel foi “uma política de terra arrasada para impedir que o Hamas alcançasse seus objetivos. Isso pode, em parte, explicar a proporção muito grande de soldados israelenses entre os 1.300 mortos naquele dia.”

DISPARANDO MÍSSEIS HELLFIRE ÀS CEGAS

Pilotos disseram à mídia israelense que entraram no campo de batalha sem qualquer inteligência, incapazes de diferenciar entre combatentes do Hamas e não combatentes israelenses, e ainda determinados a “esvaziar a barriga” de suas máquinas de guerra. “Eu me vejo em um dilema sobre o que atirar, porque há muitos deles”, comentou um piloto do Apache.

Por volta de 10h30, horário local, segundo o portal Mako, Israel tinha na área oito helicópteros Apache e “quase não havia inteligência que ajudasse a tomar decisões fatídicas” e os pilotos disparavam contra os veículos que retornavam a Gaza, na suposição de que a presença de reféns seria “baixa”. Contudo – admitiu o piloto entrevistado – seu julgamento “não era 100%”.

“Eu compreendi que tínhamos que atirar ali e rapidamente”, disse o comandante da unidade Apache, o tenente-coronel ‘E’ ao portal Mako. “Atirar em gente no nosso território – isso é algo que eu pensei que nunca faria”. “Eu fiquei num dilema sobre no que atirar, porque havia tantos deles”, disse o tenente-coronel ‘A’.

Segundo o Yedioth Aharanoth, a taxa de disparos contra “os milhares de terroristas foi tremenda no início, e só em um certo ponto os pilotos começaram a desacelerar os ataques e selecionar cuidadosamente os alvos.”

Um comandante de esquadrão explicou a Mako como quase atacou a casa de uma família israelense ocupada por militantes do Hamas, e acabou atirando ao lado dela com tiros de canhão. “Nossas forças ainda não tiveram tempo de chegar a esse acordo”, lembrou o piloto, “e eu já fiquei sem mísseis lá, que é o armamento mais preciso”.

É também do Yedioth Aharanoth a descrição de que por volta das 9h os pilotos israelenses “começaram a pulverizar os terroristas com os canhões por conta própria, sem autorização dos superiores.” E assim, sem qualquer inteligência ou capacidade de distinguir entre palestinos e israelenses – comentou Blumenthal -, os pilotos soltaram uma fúria de tiros de canhão e mísseis Hellfire contra áreas israelenses abaixo.

O QR CODE DO EMBAIXADOR ERDAN

O embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, em uma declaração que fez em 26 de outubro, quando exibiu fotos de mortos e gritou que “estamos lutando contra animais”, exibiu um código QR com a legenda “Escaneie para ver as atrocidades do Hamas”, desafio aceito por Blumenthal.

O editor do Grayzone encontrou, ao acessar o QR nesse mesmo dia, cerca de oito imagens macabras de corpos queimados e partes de corpos enegrecidos. Uma mostrava uma pilha de cadáveres masculinos completamente carbonizados empilhados em uma lixeira.

O que levou Blumenthal a indagar: “socorristas e médicos israelenses teriam eliminado israelenses judeus mortos dessa maneira?”

Ele observou que todos os israelenses mortos em 7 de outubro parecem ter sido recolhidos em sacos individuais e transportados para necrotérios.

Enquanto isso, vários vídeos gravados por israelenses mostravam profanação dos cadáveres de homens armados do Hamas mortos pelas forças de segurança – desnudando-os, urinando-os e mutilando seus corpos. “Jogar seus corpos em uma lixeira parece fazer parte da política de fato de abuso de cadáveres”, ele acrescentou.

Pouco mais de doze horas depois que o embaixador Erdan promoveu as supostas fotos de atrocidades do Hamas na ONU – registrou Blumenthal -, fotos do Arquivo do Google Drive misteriosamente sumiram, entre elas a da lixeira cheia de corpos queimados. “Teria sido eliminado porque mostrou combatentes do Hamas incendiados por um míssil Hellfire, e não israelenses ‘queimados até a morte’ pelo Hamas?”

DUPLA MORAL COLONIALISTA

Outra pergunta que os bons jornalistas deveriam fazer – acrescentou Cook – é: qual foi “o objetivo de tamanho dano? O que os militantes palestinos esperavam alcançar com isso?”

Ele observou que a resposta implícita que a mídia está fornecendo “é também a resposta que os militares israelenses querem que o público ocidental ouça: que o Hamas se envolveu em uma orgia de assassinato gratuito e selvageria porque… bem, digamos a parte silenciosa em voz alta: porque os palestinos são inerentemente selvagens”.

Com tal narrativa, ele advertiu, “os políticos ocidentais receberam uma licença para aplaudir Israel enquanto assassina uma criança palestina em Gaza a cada poucos minutos. Afinal, os selvagens só entendem a linguagem da selvageria”.

Só por isso – ele acrescentou Cook -, qualquer jornalista que deseje evitar o conluio no genocídio que se desenrola em Gaza deve ser cada vez mais cauteloso em simplesmente repetir as alegações dos militares israelenses sobre o que aconteceu em 7 de outubro.

Cook assinalou o “contraste gritante” no tratamento dado pela mídia ocidental aos eventos de 7 de outubro e seu tratamento do ataque ao estacionamento do Hospital Batista Al-Ahli, no norte de Gaza, em 17 de outubro, no qual centenas de palestinos foram mortos.

No caso do Al-Ahli, a mídia estava pronta para descartar todas as evidências de que o hospital havia sido atingido por um ataque israelense e imediatamente Israel contestou a afirmação. Em vez disso, os jornalistas apressaram-se a amplificar a contra-alegação de Israel de que um foguete palestino havia caído sobre o hospital. A maioria da mídia seguiu em frente depois de concluir que “a verdade pode nunca ser clara”, ou ainda menos credível, que os militantes palestinos eram os culpados mais prováveis.

“Em contraste, a mídia ocidental não se dispôs a levantar uma única questão sobre o que aconteceu em 7 de outubro. Eles atribuíram entusiasticamente todo o horror daquele dia ao Hamas. Eles ignoraram a realidade do caos total que reinou por muitas horas e o potencial para a tomada de decisões pobres, desesperadas e moralmente duvidosas por parte dos militares israelenses”.

Na verdade, a mídia foi muito além. Ao avançar a narrativa do “Hamas como selvagens”, eles promoveram ficções óbvias, como a história de que “o Hamas decapitou 40 bebês”. Essa notícia falsa chegou a ser retomada brevemente pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, antes de ser discretamente rebatida por seus funcionários.

O Hamas, sem dúvida, cometeu crimes de guerra em 7 de outubro – não menos importante, ao tomar civis como escudos humanos, assinalou Cook, apontando que, no entanto, esse tipo de crime é um bastante documentado ao ser cometido por soldados israelenses contra palestinos, sob várias denominações, como o ‘procedimento do vizinho’ e o ‘procedimento de alerta precoce’.”

Para Cook, o que a promoção acrítica da mídia da narrativa de Israel do “Hamas como selvagens” conseguiu é algo sinistro – e muito familiar da longa história colonial do Ocidente. “Tem sido usado para demonizar todo um povo, apresentando-o ora como bárbaros, ora como protetores e facilitadores da barbárie.”

A narrativa dos “selvagens” – ele acrescentou – está sendo manipulada por Israel para justificar sua crescente campanha de atrocidades em Gaza. É por isso que é tão importante que os jornalistas não se deixem levar, o que está em jogo é demasiado importante.

E, lembrando que o governo Netanyahu passou os últimos meses sitiado dentro de Israel, seria de bom tom adicionar às perguntas se esse o relato da “selvageria do Hamas” serviu ou não de conveniente biombo para Netanyahu, após o desastre do 7 de outubro ter ocorrido quando, na véspera, ele transferira de Gaza para a Cisjordânia dois dos três batalhões israelenses ali designados, para irem escoltar pogroms na Cisjordânia cometidos pelas turbas de Gvir.

Fonte: Papiro