Centenas de milhares de palestinos já foram forçados a deixar seus lares | Foto: AFP

Vazou na mídia israelense a solução final da ditadura de Netanyahu para Gaza, com a limpeza étnica dos 2,2 milhões de palestinos do enclave, e sua expulsão para “cidades de tendas” no norte do Sinai, proposta pelo Ministério da Inteligência de Israel.

Uma versão 2023 da “Nakba”, descrita em dez páginas. O que só faz aprofundar a indignação que grassa nas ruas do mundo inteiro contra a barbárie e o apartheid cometidos por Israel.

O documento recomenda, de forma inequívoca e explícita, a deportação de civis palestinos de Gaza como o resultado desejado da guerra. A existência do plano foi relatada pela primeira vez na semana passada no jornal israelense de negócios Calcalist. Duas outras “alternativas” à deportação pura e simples são também examinadas.

Aliás, o documento se coaduna com a recusa de Netanyahu em aceitar o cessar-fogo aprovado por larga margem pela Assembleia Geral da ONU, enquanto intensifica os bombardeios contra bairros, hospitais, escolas e mesquitas e em cerca de 20 dias matou mais crianças – em um exíguo território de 365 km² – do que conflitos no mundo todo, ao longo de um ano, desde 2019.

PLANO INCLUI O ASSALTO DAS TERRAS DE GAZA

O documento, que subentende a reocupação permanente de Gaza, agravando a recusa de Israel de cumprir a Resolução da ONU 242, que ordena a volta às fronteiras de 1967, deixa claro que os palestinos expulsos jamais poderiam retornar. Propõe, ainda, o estabelecimento de uma zona tampão que impediria que os refugiados se aproximassem da fronteira de Israel.

Uma parte muito parecida com o que o plano vazado relata já está em execução: a expulsão de 1 milhão de palestinos do norte de Gaza para o sul, para junto da fronteira com o Egito, sob as bombas israelenses.

O ministério é dirigido por Gila Gamliel, do partido de Netanyahu, o Likud. O documento, com data de 13 de outubro de 2023, com logotipo do ministério, recomenda ainda que Israel arrume cúmplices na limpeza étnica, ou dito mais cinicamente, “aliste a comunidade internacional”.

Segundo o portal israelense Local Call, o fato de um ministério do governo israelense ter preparado uma proposta tão detalhada em meio a uma ofensiva militar em larga escala na Faixa de Gaza, reflete como a ideia de transferência forçada de população está sendo elevada ao nível das discussões políticas oficiais. O portal admite que, pela lei internacional, o que é proposto é considerado crime de guerra.

CIDADE DE TENDAS NO DESERTO

O documento recomenda que Israel aja para “evacuar a população civil para o Sinai” durante a guerra; estabeleça cidades de tendas e, posteriormente, cidades mais permanentes no norte do Sinai que absorverão a população expulsa; e, em seguida, crie “uma zona estéril de vários quilômetros (…) dentro do Egito, e [impeça] o retorno da população para atividades/residências perto da fronteira com Israel”. Governos de todo o mundo, liderados pelos Estados Unidos, devem ser mobilizados para implementar a medida.

O plano de deportação em massa de civis palestinos é dividido em vários estágios. No primeiro estágio, devem ser tomadas medidas para que a população de Gaza “evacue para o sul”, enquanto os ataques aéreos se concentram no norte da Faixa de Gaza. No segundo estágio, será iniciada uma incursão terrestre em Gaza, que levará à ocupação de toda a Faixa de Norte a Sul e à “limpeza dos bunkers subterrâneos dos combatentes do Hamas”.

Simultaneamente à reocupação de Gaza – diz o documento -, os civis palestinos serão transferidos para o território egípcio e não terão permissão para retornar. “É importante deixar as rotas de viagem para o sul abertas para permitir a evacuação da população civil em direção a Rafah”, afirma o documento.

O documento propõe a promoção de uma campanha direcionada aos civis palestinos em Gaza que “os motivará a aceitar esse plano” e os levará a desistir de suas terras. “As mensagens devem girar em torno da perda de terras, deixando claro que não há esperança de retornar aos territórios que Israel ocupará em breve, seja isso verdade ou não. A imagem precisa ser: ‘Alá fez com que vocês perdessem essa terra por causa da liderança do Hamas – não há escolha a não ser mudar-se para outro lugar com a ajuda de seus irmãos muçulmanos’”, diz o documento.

A FOME E A SEDE IMPOSTOS POR ISRAEL

Como se sabe, “as mensagens” são o corte total há três semanas de água, comida, remédios, eletricidade e combustível; o indizível massacre de crianças, uma cada dez minutos, segundo a Unicef; e os bombardeios de casas, hospitais, escolas e mesquitas.

O documento também recomenda que o governo Netanyahu lidere uma campanha pública no mundo ocidental para promover o plano de transferência “de uma forma que não incite ou difame Israel”. Sugere que seja a limpeza étnica seja apresentada uma necessidade humanitária para conquistar o apoio internacional, sob a argumentação de que a realocação levará a “menos baixas entre a população civil em comparação com as baixas esperadas se a população permanecer”.

Outra recomendação é incluir os Estados Unidos na pressão sobre o Egito para que “absorva” os palestinos expulsos de Gaza. O documento do Ministério da Inteligência afirma que o Egito terá a “obrigação, segundo a lei internacional, de permitir a passagem da população” e que os Estados Unidos podem contribuir para o processo “exercendo pressão sobre o Egito, a Turquia, o Catar, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos para que contribuam com a iniciativa, seja com recursos ou com a absorção de pessoas deslocadas”. Ele também propõe a realização de uma campanha pública dedicada ao mundo árabe, com “foco na mensagem de assistência aos irmãos palestinos e sua reabilitação, mesmo ao preço de um tom que repreenda ou até mesmo prejudique Israel”.

EXPULSÃO EM MASSA

E conclui que somente a expulsão da população palestina constituirá “uma resposta apropriada [que] permitirá a criação de uma dissuasão significativa em toda a região”.

Duas outras “opções” sobre o day after foram examinadas. A primeira é permitir que a Autoridade Palestina (AP), liderada pelo partido Fatah na Cisjordânia ocupada, governe Gaza sob os auspícios israelenses. A segunda é cultivar outra “autoridade árabe local” como alternativa ao Hamas. São recusadas por serem “indesejáveis para Israel do ponto de vista estratégico e de segurança”, e não fornecerem mensagem de dissuasão suficiente para o Hezbollah.

O documento desce aos detalhes para assinalar que levar a AP para Gaza era a opção mais perigosa das três, pois poderia levar ao estabelecimento de um Estado palestino. “A divisão entre a população palestina na Judeia e Samaria e em Gaza é um dos principais obstáculos atuais que impedem o estabelecimento de um Estado palestino. É inconcebível que o resultado desse ataque [massacres do Hamas em 7 de outubro] seja uma vitória sem precedentes para o movimento nacional palestino e um caminho para a criação de um Estado palestino”.

O documento argumenta ainda que um modelo de governo militar israelense e governo civil da AP, como existe na Cisjordânia, provavelmente fracassará em Gaza. “Não há como manter uma ocupação militar efetiva em Gaza apenas com base na presença militar sem os assentamentos [israelenses] e, em pouco tempo, haverá pressão interna israelense e internacional para a retirada.”

Acrescenta ainda que, em tal situação, o Estado de Israel “será considerado uma potência colonial com um exército de ocupação – semelhante à situação atual na Judeia e Samaria, mas ainda pior”.

Ao que tudo indica, o vazamento do plano de limpeza étnica vai aprofundar o isolamento de Israel e dificultar sua execução. O presidente egípcio Al Sissi recusou terminantemente a deportação dos palestinos para território egípcio, como reiterou em telefonema no domingo (29) ao presidente norte-americano Joe Biden, no dia seguinte do vazamento do plano de limpeza étnica.

Biden, por sua vez, segundo o porta-voz presidencial egípcio, Ahmed Fahmy, garantiu que Washington também rejeita o deslocamento de palestinos para fora de sua terra natal, expressando seu apreço pelo papel positivo desempenhado pelo Egito nesta crise.

BIDEN PROPÕE MAIS DINHEIRO PARA A LIMPEZA ÉTNICA

Curiosamente, o pedido de Biden ao Congresso para financiar as guerras na Ucrânia e em Gaza com até US$ 106 bilhões incluía estas linhas (pg 40): “Esses recursos apoiariam civis deslocados e afetados por conflitos, incluindo refugiados palestinos em Gaza e na Cisjordânia, e para atender às necessidades potenciais dos habitantes de Gaza que fogem para países vizinhos. Isso incluiria alimentos e itens não alimentares, saúde, apoio a abrigos de emergência, assistência de água e saneamento e proteção de emergência. Isso também incluiria potenciais custos críticos de infraestrutura humanitária necessários para que a população refugiada forneça acesso a apoio básico que sustente a vida. Esta crise pode muito bem resultar em deslocações através das fronteiras e necessidades humanitárias regionais mais elevadas, e o financiamento pode ser utilizado para satisfazer os requisitos de programação em evolução fora de Gaza”.

A Rússia também se manifestou contra, com o chanceler Sergei Lavrov advertindo que “se dois milhões de habitantes forem expulsos, como alguns políticos em Israel e no exterior estão sugerindo, isso criará uma catástrofe que durará muitas décadas, se não séculos”.

Fonte: Papiro