Combate ao trabalho escravo doméstico exige cooperação internacional
Uma comitiva do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) revelou um cenário degradante e de abuso no trabalho doméstico na cidade de São Paulo, levantando a urgência de ações concretas para proteger os direitos e a dignidade das trabalhadoras, muitas delas estrangeiras. A missão vai elaborar um relatório com os diagnósticos e as recomendações a órgãos governamentais para o combate a estas práticas. As medidas devem envolver até mesmo ações coordenadas entre o Ministério da Justiça, o Ministério de Relações Exteriores e a Polícia Federal e outras entidades governamentais para combater essa prática, que beira o tráfico humano.
A conselheira Virgínia Berriel, que coordena a Comissão de Trabalho, Educação e Seguridade Social do CNDH, falou ao Portal sobre as recomendações que devem ser feitas aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para combater a prática. Ela também apontou as especificidades desse tipo de violação, em que as mulheres não têm consciência de seus direitos.
Em uma entrevista contundente, a conselheira do governo revelou os horrores do trabalho doméstico análogo à escravidão, por meio de uma investigação detalhada conduzida em São Paulo, a conselheira participou de uma missão que colheu depoimentos de trabalhadoras domésticas que foram libertadas de situações de exploração, expondo um cenário alarmante de abusos, violência física e sexual, além de condições degradantes.
“Agora tem uma violência que eu acho que é a pior de todas. ‘Você é da minha família’. Quer dizer, eu sou da sua família, mas eu não sento à mesa com você. Eu sou da sua família, mas eu não estou no testamento, né? Então tem essa coisa de pegar a pessoa pelo sentimento dela”, critica Virgínia. Ela diz que ouviu esse relato da secretária de Relações Internacionais do próprio Sindicato das Domésticas, que é uma boliviana.
Representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no CNDH, Virgínia descreveu a exploração emocional, onde as trabalhadoras são tratadas como parte da família, mas são excluídas dos benefícios e direitos de verdadeiros membros. Uma prática recorrente que aliena as trabalhadoras de sua consciência sobre direitos, fazendo-a acreditar na generosidade dos empregadores.
Casos dramáticos
Uma das percepções desafiadoras em relação ao tema, é a impunidade. A conselheira ouviu o caso de uma trabalhadora idosa que veio a óbito sem ter sido indenizada após ser libertada de uma residência onde passou grande parte de sua vida trabalhando em condições submissas. Virgínia também destacou que muitas trabalhadoras idosas são obrigadas a passar suas vidas em ambientes insalubres, sem condições adequadas de higiene, e enfrentam privações de comida e sono.
“Às vezes elas passam a vida inteira trabalhando numa residência, submissas, às vezes não podem comer aquela comida que o patrão come, dormem em lugares insalubres e são maltratadas, tem venezuelanas e tem filipinas nessa história”, descreveu.
A situação se agrava com a presença de imigrantes vindos de países como Venezuela e Filipinas, que, muitas vezes, têm pouca ou nenhuma formação profissional. Em alguns casos, essas trabalhadoras estrangeiras são forçadas a ensinar os filhos de seus patrões em inglês, enquanto são submetidas a condições degradantes de trabalho.
Virgínia acredita que haja agências para envio dessas pessoas para famílias ricas que solicitam. Já houve, inclusive, contatos com o consulado e dirigentes do governo das Filipinas. “Nós conseguimos que eles caçassem o direito de uma ou duas empresas que mandavam essas pessoas para o Brasil, porque tem uma espécie de uma exportação dessa mão de obra, seja para o Brasil, seja para outros países.”
A importação de empregadas filipinas se tornou possível desde um regulamento de 2012 do Ministério do Trabalho, que permite a contratação de mão de obra estrangeira por pessoas físicas, e não apenas empresas. O serviço cresceu, conforme as famílias passaram a ter dificuldade para encontrar empregadas que dormissem na residência, e surgiram agências especializadas em trazer essas mulheres inclusive para trabalhar em hotéis. Patrões dizem que as filipinas são mais submissas e disponíveis para qualquer tipo de serviço doméstico.
A conselheira enfatizou que, em alguns casos, a situação vai além de ser apenas análoga à escravidão e se configura como escravidão genuína. Os patrões exercem um controle total sobre a vida dessas trabalhadoras, incluindo abusos sexuais e violência.
Um caso emblemático mencionado na entrevista é o de uma trabalhadora doméstica que foi abandonada em uma residência pela família que a empregava. Ela foi impedida de usar o banheiro, comer adequadamente e teve seus direitos básicos negados. A família rica envolvida no caso conseguiu bloquear a mídia e manter o processo em segredo de justiça, evidenciando os desafios em trazer à tona essas situações.
“Teve julgamento hoje desse caso no TST, daquele casal da Avon que precarizou uma trabalhadora doméstica, foram embora e ela ficou abandonada no imóvel. Ela não podia comer, não podia usar o banheiro, usava uma latinha para as necessidades.” Ela se refere ao caso que envolveu a executiva da Avon, Mariah Corazza Üstündag e seu marido Dora Üstündag, que exploraram uma senhora de 61 anos, por 20 anos, numa casa em bairro nobre de São Paulo. Mariah chegou a ser presa, mas foi liberada depois de pagar fiança no valor de R$ 2.100.
Virgínia diz que ainda não sabia o resultado do julgamento, que corre em segredo de justiça, o que ela também considera uma situação preocupante. Quando questionada sobre o motivo para impedir a empregada de usar o banheiro, disse que ela nunca pediu pra ir ao banheiro. “E ela recebia comida de uma vizinha. E essa família se permite mudar e largar essa pessoa lá doente já quase a beira da morte.”
Entraves burocráticos
Diante desse cenário assustador, a entrevistada aponta para a necessidade urgente de ações abrangentes. Virgínia destacou a importância de mudanças na legislação que permitam a fiscalização das condições de trabalho nos lares, bem como a criação de abrigos para trabalhadoras que precisem sair de ambientes abusivos.
A entrevistada também abordou a problemática do acesso limitado para fiscalização das condições de trabalho no ambiente doméstico. A conselheira destacou a falta de permissão para que o sindicato das domésticas entre nas residências para verificar as condições de trabalho, o que perpetua a exploração.
“O sindicato das domésticas, ele não entra na residência de ninguém. Ele não tem como entrar, não é permitida a entrada dele para verificação das condições de trabalho. Então essa é uma reivindicação. Permissão para verificação das condições de trabalho daquela residência”. Ela diz que é preciso compreender estes domicílios protegidos contra a inviolabilidade como empresas, quando há empregados trabalhando neles.
Além disso, ela enfatizou a necessidade de campanhas de conscientização e sensibilização também foram apontadas como fundamentais para mudar a cultura que perpetua a exploração.
“Se não tiver campanhas, sejam para aquelas que vêm enganadas de outros países, em vários idiomas, nós vamos perder a mão. Gente do Ministério Público me disse que já perdeu, pois não temos mais fôlego para atacar a proporção assustadora que esse negócio chegou.”
Outra medida fundamental é a existência de abrigos preparados para acolher essas mulheres. “Que possa ter também abrigo para essas pessoas, que vêem da Bolívia ou das Filipinas e estão trabalhando e morando na casa. Se por algum motivo ela sofre uma violência e ela tem que sair, ela vai pra onde? Essa mulher vai pra onde?”
(por Cezar Xavier)