Como o sindicalismo renasceu nos EUA (e o que ele tem a nos ensinar)
No início da década de 1970, o escritor e ativista norte-americano Studs Terkel (1912-2008) decidiu ouvir a classe trabalhadora. Não lhe faltavam credenciais. Entrevistador excepcional, com experiência em programas de rádio e TV, Terkel conseguiu extrair depoimentos únicos de mais de cem trabalhadores de diversos setores. A experiência foi a base para o ensaio Trabalho (Working), de 1974. No subtítulo, o livro já anunciava sua proposta originalíssima: “Pessoas falam sobre o que fazem o dia todo e como se sentem sobre o que fazem”.
Um ponto comum em diversos relatos – sobretudo o de trabalhadores mais veteranos – era a percepção de que, àquela altura da vida, o movimento sindical não parecia ser tão influente quanto em décadas anteriores. O auge do sindicalismo americano, alcançado na virada dos anos ‘40 para ’50 do século passado, quando 33% dos trabalhadores do país eram sindicalizados, havia ficado para trás. O livro de Terkel retratava, assim, um ciclo de declínio sindical, cujo ponto de partida foi a Lei Taft-Hartley, a célebre legislação antigrevista e anticomunista de 1947, que estimulava a perseguição a sindicalistas.
Quarenta e nove anos depois, Trabalho (Working) é o nome com que o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama batiza seu mais novo projeto para a Netflix. A minissérie documental, já no primeiro de quatro episódios, rende homenagem a Terkel e à sua obra seminal. Segundo Obama, “foi a primeira vez que alguém se preocupou em perguntar às pessoas comuns como elas encaravam o trabalho”.
Com foco no segmento de prestação de serviços, o episódio 1 também desponta como uma peça de propaganda do movimento sindical. Quem menciona inicialmente o tema é a imigrante Elba, camareira há 22 anos no Hotel Pierre, em Nova York: “Aqui é obrigatório aderir ao sindicato. Mas é bom – eles trabalham por nós”.
Seus colegas concordam, ainda mais sob o risco de serem substituídos por robôs e máquinas. A mecânica Rosaura, outra funcionária do Pierre, lembra, aflita, que já existem hotéis “sem ninguém na recepção”. É o próprio hóspede que faz o check in e, em seguida, põe as malas em um carrinho. Nesse modelo de hotel, não há “nada que envolva humanos”, agrega Elba.
No curso desse bate-papo, entra em cena Beverly, a delegada sindical. Rosaura lhe pergunta o que aconteceria se as máquinas tomassem seus postos de trabalho. Beverly responde de pronto: “É por isso que temos os sindicatos! Não é tão fácil se livrar de nós. Olhem os outros hotéis, os que fecharam de vez. Eram estabelecimentos que não tinham sindicato. Eles (os funcionários) foram demitidos sem receber nada. Temos que nos manter unidos, e ninguém vai fechar aqui”.
Muito além dos hotéis e de Hollywood
Trabalhadores de hotéis puderam testar a força do movimento sindical às vésperas do 4 de Julho, o feriado da Independência dos Estados Unidos. Numa mobilização sem precedentes, uma greve unificada parou boa parte dos serviços de 19 hotéis de Los Angeles e Orange (condado da Califórinia). Redes como Hyatt, Hilton e Accor não queriam sequer negociar o aumento salarial reivindicado – de US$ 5 por hora.
Sob a liderança do sindicato Unite Here Local 11, o levante teve a adesão de milhares de cozinheiros, camareiros, lavadores de pratos, garçons, mensageiros e recepcionistas. Em assembleia, 96% da categoria apoiou a proposta de greve – a base da entidade soma mais de 32 mil trabalhadores. De acordo com o Unite Here Local 11, esses “trabalhadores penam para pagar por moradia nas cidades onde trabalham e já sofreram com cortes de empregos durante a pandemia de Covid-19”.
A greve era não apenas por melhores salários e benefícios – mas também por um fundo para moradia. “Esta paralisação foi a primeira de muitas ações que podem ocorrer neste verão por trabalhadores de hotéis no sul da Califórnia – e é apenas uma ferramenta em nossa caixa de ferramentas”, disse, no auge da greve, Kurt Petersen, um dos presidentes da Unite Here Local 11.
A percepção de que os sindicatos renasceram nos Estados Unidos não se restringe à rede hoteleira. O fenômeno é geral. Em 10 de agosto passado, a BBC News destacou que o sindicalismo estadunidense “vem ganhando força e produziu em 2023 o verão com maior número de trabalhadores dispostos a cruzar os braços nos últimos 50 anos”. A greve em Hollywood – que mobilizou 175 mil profissionais do cinema – é tão-somente “a faceta mais evidente (e glamourosa)” de uma onda sindical que não para de crescer.
Em Hollywood, o fantasma está mais à frente. Roteiristas, atores e outros profissionais do cinema olham para o futuro e tentam se proteger da invasão tsunâmica da inteligência artificial, que já é capaz de criar tramas complexas e projetar personagens hiper-realistas.
É o típico caso em que o sindicalismo é chamado a mediar uma discussão inadiável: como preservar empregos (e até profissões) em meio à 4ª Revolução Industrial – a mais acelerada e profunda das grandes transformações tecnológicas? Por regra, o avanço tecnológico cria e extingue ocupações. Como proteger os trabalhadores que estão mais vulneráveis?
Os sindicatos norte-americanos têm algo a nos ensinar com essa estratégia. É sintomático que, além dos Estados Unidos, países como Alemanha, Japão e China já disputem a vanguarda da indústria 4.0 com uma série de incentivos e programas governamentais – mas ainda sem respostas completas para o futuro do trabalho. Por que o movimento sindical não toma para si a missão e conduz o debate, muito além do setor hoteleiro e da indústria do audiovisual?
Da organização às greves
Particularmente nos Estados Unidos, centenas de manifestações se entrelaçam a essa causa mais geral, somadas às lutas contra a precarização das condições de trabalho. É o que ocorre na gigante dos correios UPS (United Parcel Service), líder mundial em entregas. Estava prevista para agosto uma greve em suas unidades, apoiada por 97% da categoria e liderada pelo Sindicato Teamsters, com capacidade de reunir mais de 340 mil trabalhadores. Seria a maior paralisação na história de uma única empresa norte-americana.
A bordo de seus caminhões, os motoristas da UPS transportam em encomendas, a cada ano, o equivalente a 6% do PIB (Produto Interno Bruto) estadunidense. Apesar do serviço estratégico que prestam, esses trabalhadores temiam (com razão) o fim do acordo coletivo, que venceu em 31 de julho. A pressão do sindicato levou a conquistas, como a instalação de ar-condicionado em toda a frota de entregas. A UPS, porém, mantinha a intransigência nas negociações das cláusulas econômicas. O reajuste salarial era o impasse principal, já que a empresa não pretendia nem repor a inflação do período.
Em qualquer canto do mundo, quando se trata de serviços essenciais, é raro que a população apoie uma paralisação. Mas o movimento dos trabalhadores da UPS ganhou a simpatia da opinião pública. Muitos compararam a manifestação atual com a bem-sucedida greve de 1997, quando, após 15 anos, os funcionários da empresa deixaram de ganhar apenas US$ 8 por hora. Mais de 25 anos depois, a UPS novamente cedeu e melhorou as remunerações, o que impediu o início da greve.
Em muitas outras categorias, as negociações não evoluíram para acordos, nem mesmo após os picos da crise sanitária, que serviram de pretexto para o patronato cortar direitos. Ainda que a explosão de greves seja recente, o renascimento do sindicalismo norte-americano tinha antecedentes elementares. Só em 2022, a Junta Nacional de Relações Laborais registrou uma alta de 53% no número de pedidos de abertura de sindicatos. O movimento tem hoje o apoio de 71% dos trabalhadores norte-americanos, maior índice desde 1965, conforme a Gallup.
Com mais consciência e organização na base, a hora do conflito de classes chegou. “Em todo o país, de acordo com o mapeamento da Escola de Relações Laborais e Industriais da Universidade Cornell, estavam em curso, no início de agosto, quase 900 greves”, indica a BBC. “Enquanto o país contabilizou 23 grandes mobilizações (com adesão de ao menos alguns milhares de empregados) em 2021, houve até agora, em 2023, 44 paralisações com esse mesmo perfil.”
O desafio dessa onda é ampliar a taxa de sindicalização, que ainda é muito baixa nos Estados Unidos. O número geral de sindicalizados passou de 20 milhões em 1980 para 14,3 milhões nos dias atuais. No setor privado, apenas 6% dos trabalhadores são associados a alguma entidade sindical – a metade da taxa de 30 anos atrás. Funcionários de gigantes como a Apple, a Amazon e a Starbucks começam a enfrentar o tabu. O momento não poderia ser mais propício.
“Nos anos 1980 e 1990, os sindicatos viam greves como atividades muito perigosas, que poderiam resultar em sua dissolução. Era melhor fazer concessões, uma posição mais passiva”, disse à BBC Nelson Lichtenstein, diretor do Centro de Estudos do Trabalho, Emprego e Democracia da Universidade da Califórnia. “Agora, os sindicatos entraram no modo ofensivo, o que não víamos há muito, muito tempo. O nível de atividades grevistas que estamos vendo agora se equipara ao que tínhamos nos anos 1970.”
Os democratas
Trabalho, o documentário, tenta associar o Partido Democrata à história do sindicalismo, ao evocar as primeiras medidas de combate à superexploração nas fábricas dos Estados Unidos. “No auge da Grande Depressão, Franklin Roosevelt aprovou proteções para os trabalhadores. O New Deal incluía a jornada de 40 horas semanais, um novo salário mínimo, segurança social e o direito à sindicalização”, narra Obama. “O trabalho nas fábricas continuava duro, mas os empregos melhoraram – tanto que se tornaram a base da classe média mais robusta na história mundial.”
A pouco mais de um ano das eleições à Casa Branca, o também democrata Joe Biden tenta reconectar a seu partido às camadas da classe trabalhadora que foram (e ainda estão) atraídas por Donald Trump e pela extrema-direita. Biden é, desde Roosevelt, o presidente dos Estados Unidos que mais discursou em defesa do movimento sindical. Um de seus mantras é que “Wall Street não construiu este país. A classe trabalhadora é que construiu este país – e os sindicatos construíram a classe trabalhadora”.
Mas, em 2022, sua proposta para solucionar a campanha salarial dos ferroviários foi considerada, antes de tudo, autoritária. De um lado, estavam empresas como Union Pacific, BNSF e Norfolk Southern. Do outro, sindicatos que representam 60 mil trabalhadores. Biden passou a impressão de que sua prioridade número 1 não era dialogar com a categoria, mas, sim, evitar a qualquer custo a paralisação das ferrovias, que poderia causar prejuízos estimados em US$ 2 bilhões por dia.
A Casa Branca detectou o ruído e tenta contrapô-lo, agora, com uma posição mais favorável aos trabalhadores em outra contenda no setor de transporte: o UAW (United Auto Workers) pressiona as principais montadoras instaladas em Detroit, as chamadas Três Grandes – Ford, General Motors e Stellantis. O contrato coletivo firmado entre as partes – e válido para 150 mil trabalhadores – expira em 14 de setembro.
A causa da energia limpa no setor, baseada em veículos elétricos, foi o ponto de equilíbrio para Biden tentar a mediação. “Estou pedindo a todos os lados que trabalhem juntos para forjar um acordo justo. Apoio uma transição justa para um futuro de energia limpa”, declarou o presidente, na segunda-feira (14), em comunicado à imprensa.
Desta vez, porém, o aceno aos trabalhadores metalúrgicos das Três Grandes foi mais explícito do que aos ferroviários. “O UAW ajudou a criar a classe média americana e, à medida que avançamos nessa transição para novas tecnologias, o UAW merece um contrato que sustente a classe média”, afirmou Biden.
Ao lado de reajustes salariais dignos, os trabalhadores de Detroit pedem garantias em caso de fechamento de plantas das montadoras e uma transição pactuada para a energia limpa. O presidente da UAW, Shawn Fain, demonstra simpatia por Biden, mas uma greve sob seu comando pode consolidar 2023 como o ano em que os norte-americanos voltaram a apostar no movimento sindical. É esperado que, até o desfecho da batalha de Detroit, a atuação de Biden possa ir um pouco além das palavras.