Foto: Agência Brasil

Previsto para ser votado nesta quarta-feira (12) na Câmara, o Projeto de Lei Antifacção, apresentado pelo governo federal, foi completamente deturpado pelo relator, deputado Guilherme Derrite (PP-SP). Na avaliação de Luís Flávio Sapori, professor da PUC-MG e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o substitutivo é um “monstrengo jurídico”.

“Ele conseguiu a proeza de apresentar uma proposta de reforma legislativa que piora a situação do enfrentamento ao crime organizado no Brasil”, acrescenta Sapori.

O texto originalmente apresentado pelo governo para apreciação na Câmara atualiza a Lei de Organizações Criminosas (Lei nº. 12.850/2013). O projeto levou cerca de um ano para ser construído com especialistas da área no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública e foi apresentado no final de outubro, após a chacina realizada pelo governo Cláudio Castro (PL) no Rio de Janeiro.

Para assumir a relatoria do projeto, Guilherme Derrite, que é secretário de Segurança Pública de São Paulo, se licenciou às pressas do cargo e se dedicou a costurar o “monstrengo”, que tem sido alvo de críticas de diversos estudiosos e autoridades da área.

Diante da baixa qualidade do texto apresentado pelo bolsonarista e da insatisfação do governo, um acordo entre o Palácio do Planalto e a Câmara adiou a votação, que estava inicialmente marcada para esta terça-feira (11).

Avanços do projeto original

Sapori. Foto: Guilherme Dardanhan/ALMG

“O PL Antifacção que o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviou era muito bom e constituía o maior avanço legislativo que o Brasil elaborou para enfrentar o crime organizado desde 2013, quando foi criada a Lei de Organizações Criminosas”, avalia Luís Flávio Sapori.

Entre os méritos apontados pelo professor estão o aumento das penas e o fato de dificultar a progressão do regime; a criação de mecanismos mais efetivos de investigação das polícias e do Ministério Público — inclusive com a possibilidade de infiltração de agentes nessas organizações — e a ampliação da possibilidade de apreensão de bens dos membros da organização.

“De maneira geral, o projeto era o ideal para ser um parâmetro a ser discutido no Congresso Nacional. Poderia ser um ponto de consenso, eu diria. Ele tem todos os elementos para isso, tanto para a oposição quanto para o governo; para os segmentos mais à direita e mais à esquerda do espectro político brasileiro, além de atender perfeitamente à necessidade da sociedade brasileira de aumentar o seu grau de eficácia no enfrentamento a crime organizado”, argumenta.

Já o texto apresentado por Derrite vai no sentido contrário, inclusive de seu próprio discurso e da direita de tornar a lei mais dura. “O substitutivo dele desarticula a atuação das forças policiais estaduais e de âmbito federal, ignora o Ministério Público e a importância da Receita Federal e do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Além disso, fragmenta ainda mais a atuação do aparato estatal que lida com o crime organizado”, salienta.

Ao mesmo tempo, o professor aponta que o substitutivo aumenta o corporativismo. “Ele dá às polícias civis estaduais a principal atribuição de investigar o crime organizado no Brasil, tirando da Polícia Federal e do Ministério Público essa atribuição, o que é um completo absurdo. O projeto dele não atende nem ao governo, nem à sociedade e nem sequer à própria extrema-direita que ele representa”.

O professor complementa dizendo que essa concepção, segundo a qual a União não deve colaborar com os governos estaduais, é estreita. “É a visão de um policial que pensa apenas do ponto de vista da sua corporação. E a verdade é que só vamos enfrentar de fato o crime organizado com articulação e com cooperação de esforços entre União e estados”.

Ele prossegue dizendo: “Quero acreditar que isso seja resultado de incompetência do deputado Guilherme Derrite, que não tem a maturidade e a sofisticação intelectual e política suficiente para entender a gravidade da situação”.

Crime organizado x terrorismo

Outro aspecto grave trazido pelo substitutivo diz respeito ao terrorismo. A tentativa de equiparar os dois tipos penais cresceu na direita após a operação no Rio e, desde então, foi apresentada como a “bala de prata” para conter a atuação das organizações criminosas. A proposta de Derrite não faz essa transmutação, mas inclui as atividades das facções na Lei Antiterrorismo já existente.

“Isso é um erro grosseiro porque o terrorismo não tem os mesmos objetivos das organizações do tráfico ou das milícias. O terrorismo é uma atividade que tem fins político-ideológicos, de enfrentar o Estado como tal. O crime organizado tem como objetivo o lucro, o ganho, é uma empresa do crime. É diferente”, enfatiza o professor.

Por isso, a forma de enfrentá-los é também distinta. “O terrorismo envolve um problema de defesa nacional, de forças armadas em boa medida. É como uma guerra interna contra um inimigo interno, em que o confronto armado passa a ser quase que legitimado pela lei”, completa Sapori.

Esse, no entanto, não deve ser o caso do crime organizado. “Você não lida com as facções como numa guerra, como o Rio de Janeiro tem feito há 40 anos. É como institucionalizar o modelo de operações que aconteceu semanas atrás. Trata-se de uma tática de extermínio do inimigo. Essa estratégia tem, historicamente, se mostrado ineficaz”, afirma.

Cabe acrescentar que, conforme noticiado pelo colunista Igor Gadelha, do Metrópoles, agentes do mercado financeiro teriam alertado Derrite e o presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), sobre os efeitos nocivos que essa nova classificação traria para o sistema financeiro e a economia. Afinal, é comum empresas terem restrições, em seus estatutos, quanto à possibilidade de investimentos em países que abrigam terroristas, o que resultaria em fuga de capitais.

Mas, Sapori reforça também outro grave precedente que a reclassificação traria e que também tem sido levantado por outros críticos. “Além de problemas econômicos, a possibilidade de intervenção internacional é nítida, assim como a utilização indevida das Forças Armadas na segurança interna”, aponta.

O professor salienta que para lidar com as organizações criminosas, “o que funciona é basicamente a articulação de esforços, a integração, a retomada de territórios e muito trabalho de inteligência. Eram essas diretrizes que tinham de estar inseridas na lei de organizações criminosas e não na lei antiterrorismo”.