Foto original: Tomaz Silva/Agência Brasil

Há uma semana, a população do Rio de Janeiro vivia um pesadelo com a operação deflagrada pelo governo estadual contra o Comando Vermelho, que teve como saldo a morte de 121 pessoas. O momento escolhido não poderia ter sido melhor para a extrema direita que, a um ano das eleições, se via numa fase de relativo refluxo na arena política.

A espetaculosa operação deu novo ânimo aos desejos sanguinários de seus líderes e militantes mais aguerridos, além de ressuscitar pautas populistas e perigosas, mas que não devem mudar a realidade das comunidades subjugadas pelo crime organizado. O que pode mudar, para muito pior, é o poder da extrema direita, o fortalecimento de discursos e ações autoritários e os riscos à soberania nacional.

“É esse projeto que anima o movimento político de extrema direita, que tem como núcleo duro a politização autonomista das polícias e, sobretudo, das polícias militares. Controlar as armas é fundamental para uma transição de regime político, não para produzir um golpe, mas para produzir uma rotina de dominação total. Esse projeto veio, nos últimos anos, testando os efeitos jurídicos, políticos e midiáticos de se fabricar um regime de exceção”, alerta Gabriel Feltran, diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS), em entrevista contundente publicada pela Folha de S.Paulo nesta segunda-feira (3).

Momento oportuno

Segundo as autoridades do Rio, a operação é resultado de uma longa investigação. Seja como for, o timing de sua deflagração, agora, vai ao encontro de muitos interesses no campo da direita, em especial sua fatia mais extremada.

A matança ocorreu a duas semanas da COP30, evento que coloca o Brasil em maior evidência internacional. Também é um momento em que a extrema direita amarga revezes importantes com as condenações de Jair Bolsonaro (PL), militares e autoridades do primeiro escalão de seu governo por tentativa de golpe de Estado. E a pauta da anistia ou da revisão da dosimetria empacou.

A interferência do governo de Donald Trump sobre assuntos internos do Brasil e o tarifaço, que eram a principal aposta dos “patriotas” para quebrar as pernas do governo Lula, se mostrou um tiro que saiu pela culatra (para usar uma metáfora cara ao bolsonarismo). Apesar das incertezas em torno do que se passa na cabeça do estadunidense, seu encontro com Lula abriu caminho para uma possível reversão das medidas aplicadas.

Somam-se a isso os avanços sociais e na economia, bem como no desempenho de Lula junto à opinião pública — seja como governante, seja como candidato à reeleição —, enquanto a direita, dividida, ainda não sabe quem lançar à presidência. E no Rio, Cláudio Castro, medíocre governante, estava prestes a passar por julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pode levar à sua cassação.

Em meio a esse cenário, nada melhor para a extrema direita do que investir em algo que resulte numa espécie de “freio de arrumação” a seu favor. E a segurança pública é uma das áreas mais sensíveis e suscetíveis a manipulações.

Mal resolvido na história republicana brasileira, o combate à violência sempre serviu de pretexto para controlar populações marginalizadas e vulneráveis (a grande maioria negra) e projetar as lideranças políticas mais autoritárias que, quando emerge uma crise, apelam para o discurso da defesa da pena de morte, da redução da maioridade penal e do maior encarceramento como soluções mágicas e fáceis para problemas complexos.

Estancar a atuação desses grupos passa muito mais por operações de inteligência e estrangulamento financeiro e material — como algumas já realizadas pelo governo federal— do que pela morte de seus membros, facilmente substituíveis na rede do crime. Mas, questões como essa são ignoradas pela turma bolsonarista.

Organizações “terroristas”

A panaceia do momento para esse segmento político é a tipificação das organizações criminosas como terroristas. A proposta pode parecer óbvia para uma população sofrida e cansada de viver em meio à troca de tiros, aos assaltos e à barbárie. Mas, não nos enganemos: especialistas têm alertado que isso pouco mudaria a dinâmica das facções; no entanto, pode ser um ponto de virada perigoso para a soberania nacional e para a atuação de movimentos sociais e dos que se opuserem à extrema direita.

A defesa dessa bandeira converge com o discurso de Donald Trump e com suas ações recentes em mares caribenhos, cujo objetivo seria, supostamente, acabar com “narcoterroristas” da Venezuela e da Colômbia. E não faltam lideranças brasileiras subservientes e alinhadas ao ideário trumpista para aderirem à tese.

“Não se trata apenas de traficantes de drogas — são narcoterroristas trazendo morte e destruição às nossas cidades”, disse o secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, sobre os ataques às embarcações. “É uma operação do Estado contra narcoterroristas”, afirmou Cláudio Castro após o morticínio a mando do seu governo, afinadinho com a Casa Branca.

O governador, aliás, tem defendido a mudança de classificação junto à gestão Trump há meses. Conforme informou a coluna de Malu Gaspar em O Globonesta terça-feira (4), “no início de 2025, o governo do Rio entregou à embaixada dos Estados Unidos no Brasil um relatório em que lista o que seriam os benefícios da mudança de classificação”.

O governo republicano vê, numa nova onda de intervenções na América Latina, uma forma de se fortalecer politicamente — já que no plano internacional mais amplo, não tem forças para competir com a China, por exemplo — e vender sua ideia de Make America Great Again. De maneira que os planos entreguistas do bolsonarismo vêm bem a calhar. E esta é a aposta do momento.

Os propósitos políticos da jogada, aliás, foram rapidamente capturados pelos governadores de direita que, reunidos, vieram com a ideia de um tal “Consórcio da Paz”, com o objetivo de colher os frutos eleitorais que o combate à violência pode lhes trazer.

Acontece que não há almoço grátis. Essa mudança, que pode parecer óbvia e necessária é, na verdade, um cavalo de Tróia para o Brasil. Além de abrir caminho para intervenções dos EUA em solo brasileiro — sob o pretexto de combate ao terrorismo — pode, ainda, resultar na perseguição de movimentos sociais (como o MST, historicamente tratado como “terrorista” pela direita) e de quaisquer pessoas que representem algum tipo de resistência aos seus planos.

“Basta essa classificação para que se amplie enormemente o contingente das pessoas expostas ao extermínio sumário, em institucionalidade que protege sua fachada democrática. Assim os ‘narcopesquisadores’, os ‘narcojornalistas’ e o ‘narcopresidente’ podem igualmente ter o mesmo destino dos ‘narcoterroristas’ mortos na favela”, destaca Feltran.

O contexto, portanto, é mais perigoso do que parece. Projeto de lei com esse conteúdo já tramita no Congresso. Trata-se de mais uma batalha a ser travada não entre esquerda e direita, mas entre os que defendem a democracia e a garantia de direitos básicos e a extrema direita fascista que cresce à base do autoritarismo, das armas e do sangue — de negros, pobres e pessoas marginalizadas, não o seu próprio, claro.