A grandeza literária de Rachel de Queiroz em choque com a própria história
A escritora Rachel de Queiroz em posse na Academia Brasileira de Letras – Foto: Arquivo Nacional/Wikimedia Commons
No fim das tardes de novembro, quando o sol parece indeciso entre se por e incendiar o horizonte, gosto de imaginar Rachel de Queiroz sentada à varanda, folheando a própria vida como quem revisita um álbum antigo. Nada nela é simples. Nada coube jamais nas molduras prontas — nem as fotografias que Noemi retocava em Caminho de Pedras, nem os rótulos que tentaram colar na escritora ao longo de quase um século.
Nas entrevistas que deu, Rachel falava de tudo: escritores, bastidores literários, fofocas amenas, e de repente, como quem pega uma xícara de café, mencionava sua participação ativa no golpe de 1964. Estava “bem acompanhada” de Rubem Fonseca, Gilberto Freyre, Dinah Silveira de Queiroz, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Austregésilo de Athayde. Enquanto estes guardavam alguma reserva (e arrependimento) contra os generais, Rachel os defendeu sem hesitar. Sem desculpas. Certa até o fim de que fizera o bem.
Rachel, afinal, era do tipo que desafia até o espelho. Era essa mistura de encanto e dureza que compunha a figura fascinante — e desconcertante — da maior escritora que o Brasil já teve.
Filha de um Ceará seco e persistente, estreou cedo no ofício de erguer mundos com palavras. E o fez com a aspereza exata da terra que conhecia: aos 20 anos, escreveu O Quinze como quem finca um marco no chão — de repente, uma mulher nordestina rompia a porteira do modernismo com um romance que se recusava a ver a seca apenas como paisagem e a fome apenas como fatalidade.
Mas Rachel nunca foi só literatura. Foi também vertigem, deslocamento, uma encruzilhada onde ideias contrárias às vezes se abraçavam. Na segunda-feira, 17 de novembro de 2025, Rachel faria 115 anos, não fosse sua partida há exatos 22 anos.
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Rachel de Queiroz, a inquieta escritora social
Eliana Gomes – Centenário de Rachel de Queiroz
A juventude vermelha que o tempo apagou
Antes de ser lida por presidentes e generais, Rachel foi lida pelos companheiros de militância. Entrou cedo no Partido Comunista, debateu educação, escreveu sobre lutas sociais, flertou com um socialismo libertário que já fervilhava na década de 1930. E sentiu, no próprio corpo, o peso da repressão política de Vargas: prisão, vigilância, livros queimados — uma coreografia do medo que muitos escritores daquela geração conheceram.
Há uma cena que sempre imagino: Rachel saindo da cadeia, carregando na alma as brasas de uma esperança e os ossos partidos de outra. Talvez ali tenha começado a desconfiança que a acompanharia para sempre — a do escritor que teme qualquer dogma, de qualquer lado.
Ou talvez tenha sido apenas a vida, que às vezes empurra para longe aquilo que antes parecia tão evidente.
Da utopia ao grito nos quartéis
É difícil — e talvez injusto — escrever sobre Rachel sem entrar na sala mais incômoda de sua biografia: o apoio firme ao golpe de 1964. A mesma jovem que desafiara a polícia política tornou-se, aos cinquenta e poucos anos, uma defensora convicta dos militares. Fez parte do Arena, aplaudiu o regime, integrou conselhos oficiais.
“Não gostávamos de Jango”, disse em uma entrevista.
O paradoxo começa cedo. Rachel que enfrentou polícia nas ruas de Fortaleza em 1934; que ralou as sandálias no trotskismo de juventude; que participou dos tumultos de 1935 — é a mesma Rachel que, em 1954, conspirava por um golpe “para impedir a degradação do país”, como conta.
E contava isso com uma naturalidade de tirar o ar. Dizia que o suicídio de Getúlio frustrara o movimento. Dizia que a carta-testamento era “de palanque”, não de alguém em desespero.
Anos depois, tentaria atuar novamente para barrar a posse de Juscelino. Foi ao Catete, almoçou com Café Filho, discutiu com amigos, articulou — e perdeu. “Vocês nunca me levarão a um golpe”, dizia Café. Rachel repetia a frase com um certo orgulho ressentido, como se ainda hoje pudesse apertar o destino pelo colarinho.
Era uma revolucionária às avessas: alguém que, tendo passado pela esquerda, nela nunca coube; e, tendo abraçado a direita, nela encontrou sua trincheira definitiva.
Entre a moça comunista e a senhora que defendia Castello Branco há uma distância que não cabe em nenhuma fotografia. A pergunta, no entanto, continua aberta como ferida: como se transforma uma mulher que um dia lutou contra a repressão em alguém que a justifica?
Há quem diga que foi desencanto. Há quem veja oportunismo. Há quem acredite ser o reflexo de um país que, tantas vezes, oscila entre extremos. Um Brasil que teme radicalismos, mas que também teme mudanças.
A verdade talvez esteja numa zona cinzenta — difícil de iluminar sem os holofotes do julgamento, mas também impossível de ignorar.
O ódio político como motor
O elemento que unifica essa travessia — do trotskismo ao anticomunismo — é o ódio. O ódio a Getúlio, a Jango, ao trabalhismo inteiro, a Brizola cujo nome ela sequer pronunciava.
Esse ódio — visceral, quase literário — movia sua visão política. Era metonímia e metralhadora.
Rachel acreditava mesmo que Vargas era fascista. Acreditava que o PTB repetia um projeto corporativista. Acreditava que a UDN era a modernidade personificada. E o mais impressionante: acreditava piamente que o golpe de 1964 era um caminho necessário para restaurar a democracia.
Era, como tantos de sua geração, produto de um Brasil paradoxal que sonhava com um país europeu governado por militares tropicais.
O que seu caso nos diz hoje
Há algo de absolutamente contemporâneo na trajetória de Rachel.
Hoje também vemos gente instruída, bem-intencionada, defensora da modernidade, defender golpes como atalhos para a democracia. Vemos setores da elite intelectual escorregarem nos mesmos raciocínios circulares de 60 anos atrás.
Rachel de Queiroz acreditou sinceramente que derrubar um governo eleito abriria caminho para outro governo — igualmente democrático, só que mais afinado com seus valores. Um erro de cálculo repetido, reciclado, insistente na história brasileira.
Seu caso ensina muito sobre como sentimentos pessoais, rancores políticos, visões de mundo e ilusões históricas podem desviar até mesmo espíritos brilhantes.
A escritora que a contradição não diminuiu
Para além das batalhas políticas, há a Rachel maior. A que escreveu As Três Marias, Memorial de Maria Moura, centenas de crônicas que capturavam o Brasil miúdo, o Brasil dos detalhes ínfimos, dos gestos domésticos que dizem tanto quanto os monumentos. A que deu às mulheres personagens que respiravam o mundo com seus próprios pulmões — sem sentimentalismo, sem concessões.
A que, com uma naturalidade silenciosa, abriu portas que até então eram paredes: primeira mulher na Academia Brasileira de Letras, primeira mulher a ganhar o Prêmio Camões.
A grandeza literária de Rachel é tão sólida quanto os monólitos de Quixadá. E talvez por isso sobreviva às sombras: porque ninguém apaga uma obra que, desde jovem, aprendeu a dizer o que precisava ser dito — mesmo quando o país preferia o silêncio.
O desafio de olhar para ela — e para nós
Rachel de Queiroz não cabe na simplicidade. Ela é pedra e água; seca e germinação. É a evidência de que o Brasil quase sempre produz figuras que transitam entre polos que, na teoria, deveriam ser inconciliáveis.
Há em sua trajetória um espelho desconfortável: o de um país que já foi comunista no sonho e conservador no voto, que já queimou livros e também os celebrou, que já perseguiu escritores e já ergueu estátuas para eles.
Olhar para Rachel é olhar para nós — para os caminhos que escolhemos, para os que evitamos, e para os que ainda precisamos atravessar.
No fim das contas, talvez a maior contradição de Rachel seja também sua lição mais preciosa: a de que a literatura, quando é grande, ultrapassa o próprio autor. E nos obriga — mais do que a amar ou a condenar — a compreender.
Ou, pelo menos, a tentar.
No fim das contas, sentimos que carregamos duas Racheis conosco:
A escritora sublime, dona de uma obra indispensável.
E a conspiradora convicta, que acreditou num projeto político sombrio.
Uma não anula a outra. Uma não salva a outra.
Mas ambas fazem parte da história — a dela e a nossa.
E talvez a única forma honesta de lidar com figuras tão complexas seja reconhecê-las por inteiro: as luzes intensas, as sombras profundas, as contradições que, afinal, são matéria de humanidade.
por cezar xavier

