Lei foi aprovada com 20 favoráveis entre 31 senadores Foto: SenadoUy – 15.out.2025
O Uruguai deu um passo inédito na América do Sul ao aprovar a Lei da Morte Digna, que legaliza a eutanásia em todo o território nacional. O projeto, debatido há mais de dez anos no Parlamento, foi aprovado nesta quarta-feira (15) no Senado por 20 votos a favor e 11 contra, após ter recebido aval da Câmara dos Representantes em agosto.A iniciativa — promovida pela Frente Ampla, coalizão de partidos de centro-esquerda — agora segue para sanção do presidente Yamandú Orsi, que já manifestou apoio à medida.Com a decisão, o Uruguai se junta à Colômbia e ao Equador como os únicos países latino-americanos a permitir legalmente a eutanásia. Segundo pesquisa da consultoria Cifra, realizada em maio, 62% dos uruguaios apoiam a legalização, enquanto 24% se opõem.O que diz a nova leiA Lei da Morte Digna permite que cidadãos ou residentes maiores de idade solicitem o procedimento em casos de doença incurável, sofrimento insuportável ou deterioração grave da qualidade de vida, desde que estejam mentalmente aptos para tomar a decisão.O pedido deve ser voluntário, consciente e por escrito com a presença de testemunhas. O paciente passará por múltiplas etapas de avaliação médica e psicológica antes da autorização final.O objetivo, segundo o texto, é garantir que a escolha seja autônoma, livre de pressões externas e cercada de garantias éticas e médicas.A Ordem dos Médicos do Uruguai participou como consultora durante o processo de elaboração da lei e informou que o texto “busca assegurar o máximo de garantias tanto aos pacientes quanto aos profissionais de saúde”.Um país de tradição liberal e direitos civisO Uruguai reforça, com essa decisão, sua tradição de vanguarda em temas sociais e de direitos individuais. O país já havia sido pioneiro na legalização do aborto, na regulamentação da cannabis e no casamento entre pessoas do mesmo sexo.Para o deputado Luís Gallo, da Frente Ampla, o texto representa “um ato de respeito à liberdade e à dignidade humana”.“O pedido é estritamente pessoal. Ele respeita a vontade livre e individual do paciente, sem interferência, porque diz respeito à sua vida, ao seu sofrimento e à sua decisão de não continuar vivendo”, afirmou.A votação no Senado teve maioria ampla, refletindo o apoio popular crescente à medida, em contraste com o debate acirrado na Câmara dos Deputados, onde o projeto passou por 64 votos a 35.Vozes da compaixão: histórias que inspiraram a leiEntre os rostos que simbolizam a luta pela legalização está o de Beatriz Gelós, 71 anos, portadora de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) — doença degenerativa que causa paralisia progressiva e leva à morte.Em entrevista à AFP, Beatriz disse que a aprovação da lei lhe traz “paz e alívio”.“É uma lei compassiva, muito humana, muito bem escrita. Chegou a hora de encerrar esse debate. As pessoas não sabem o que é viver assim”, afirmou, emocionada, em sua cadeira de rodas.Outro nome lembrado é o de Pablo Salgueiro, que morreu em 2020 sem conseguir autorização para pôr fim ao próprio sofrimento causado pela mesma doença. Sua filha, Florencia Salgueiro, transformou a dor pessoal em militância e liderou o grupo Empathy, que pressionou o Parlamento pela aprovação da norma.“O ponto central é o respeito à decisão do adulto que quer acabar com seu sofrimento”, disse Florencia.Resistências e questionamentos éticosApesar da maioria favorável, o tema continua dividindo opiniões no país. A Igreja Católica expressou “tristeza” com a aprovação da lei, afirmando que a medida “relativiza o valor da vida humana”.Mais de uma dúzia de organizações civis divulgaram carta aberta chamando a norma de “deficiente e perigosa”, alegando que “as pessoas mais vulneráveis estão sendo deixadas desprotegidas”.Os críticos alertam para possíveis abusos e defendem investimento em cuidados paliativos, em vez da legalização da morte assistida.Eutanásia no mundo: prática ainda restritaA legalização da eutanásia é rara no mundo e segue parâmetros distintos em cada país. Atualmente, o procedimento é permitido na Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Espanha, Canadá, Nova Zelândia e em alguns estados da Austrália e dos Estados Unidos.Na América Latina, Colômbia legalizou a prática em 1997, o Equador em 2024, e agora o Uruguai se torna o terceiro país da região a adotar a medida.Na Suíça, apenas o suicídio assistido é legal — nesse caso, o paciente ingere a substância letal por conta própria. Já a eutanásia, em que o médico administra a dose, é considerada crime.No Brasil, tanto a eutanásia quanto o suicídio assistido são proibidos por lei. O Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece apenas a ortotanásia — a suspensão de tratamentos invasivos em pacientes terminais com consentimento do paciente ou da família.Autonomia, sofrimento e dignidade: os dilemas de um novo direitoA aprovação da Lei da Morte Digna no Uruguai reacende um debate global sobre os limites da autonomia humana e o direito ao fim do sofrimento.Para seus defensores, trata-se de um ato de liberdade, que reconhece o direito do indivíduo de decidir sobre o próprio destino diante da dor incurável. Para os opositores, representa um risco ético e moral, com potenciais impactos sobre os valores da medicina e da vida.Independentemente da posição, o Uruguai reafirma seu papel como laboratório social e jurídico da América Latina, onde a compaixão, a liberdade e o debate ético caminham lado a lado.
Cezar Xavier com informações de Agências de Notícias