Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão conjunta do Congresso Nacional. Parlamentares à bancada acompanham sessão. Mesa: líder do governo no Congresso Nacional. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

As investigações da Polícia Federal mostram que o desvio de emendas parlamentares, antes visto como um problema de “corrupção tradicional”, evoluiu para um esquema de lavagem de dinheiro que se entrelaça com o crime organizado. O caso do Maranhão é emblemático: o agiota Josival Cavalcanti da Silva, o “Pacovan”, que atuava como intermediário entre políticos e prefeituras, foi assassinado há pouco mais de um ano — deixando rastros de uma rede que movimentava milhões em recursos públicos desviados.

A engrenagem era simples e brutal. Prefeitos recebiam as emendas via Pix — transferências diretas ao caixa único das prefeituras — e devolviam parte do dinheiro a parlamentares e agiotas. O Tribunal de Contas da União (TCU) reconhece que, mesmo com novos sistemas de monitoramento, ainda só consegue rastrear 70% das transferências feitas em 2025. O restante corre em um terreno obscuro, onde o dinheiro público desaparece sem deixar vestígios.

Flávio Dino aperta o cerco

O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, convocou para o dia 23 uma nova audiência pública sobre o uso das emendas parlamentares. Dino, que já determinou bloqueios de recursos e cobrou prestação de contas de deputados e senadores, quer saber até onde o sistema de controle avançou — e o que ainda está sendo ocultado.

Em conversas reservadas, a colunista Vera Rosa, do Estadão, diz que ministros do STF têm relatado que parte significativa das emendas suspeitas é “religiosa”, isto é, vinculada a entidades ou obras fantasmas usadas para lavar dinheiro de propina. Segundo um deles, “o parlamentar fica com um terço” e o restante se dilui em contratos forjados. As obras, quando existem, são apenas fachadas.

Congresso em pânico

A escalada das investigações levou o Congresso a reagir com pânico. A tentativa mais explícita foi a PEC da Blindagem, uma proposta que buscava proteger parlamentares e dirigentes partidários contra investigações criminais. A medida, que chegou a avançar na Câmara, foi barrada pelo Senado após forte reação popular.

O motivo do temor é claro: a Polícia Federal está cada vez mais próxima de rastrear o caminho do dinheiro. Em nova operação, a PF cumpriu mandados contra o deputado Dal Barreto (União Brasil-BA), após descobrir que um posto de gasolina de sua propriedade recebeu recursos de emenda Pix repassada por outro deputado — um caso típico de triangulação entre parlamentares.

A ação penal que envolve Josimar Maranhãozinho, Pastor Gil e Bosco Costa, todos do PL, reforça o padrão. Eles são acusados de cobrar R$ 1,6 milhão de propina do então prefeito de São José de Ribamar (MA) para liberar uma emenda de R$ 7 milhões. Segundo a PF, o esquema incluía uma “estrutura armada” para intimidar prefeitos e garantir a devolução de parte dos repasses.

A “holding” do crime e o preço do habeas corpus

O epicentro do escândalo continua sendo o Maranhão, onde Pacovan virou símbolo da fusão entre a agiotagem, a política e o crime. Ele emprestava dinheiro a parlamentares, intermediava acordos com prefeituras e recuperava o capital com o desvio das emendas públicas. Quando preso, pagava propina a autoridades do Judiciário local — segundo as investigações, chegou a reclamar da “inflação no preço do habeas corpus”.

Seu assassinato, há pouco mais de um ano, marcou a ruptura violenta dessa engrenagem, mas não o fim dela. Pelo contrário: novos operadores e fintechs passaram a ocupar o espaço, usando plataformas digitais para mascarar as transferências e dar aparência legal a recursos sujos.

O dilema de Lula diante de um Congresso capturado

Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenta recompor sua base e governar com um Congresso dominado pelo Centrão, a crise das emendas se transforma em um campo minado político. Após ser derrotado em votações que reforçaram o poder do Legislativo sobre o Orçamento, o Planalto ameaça cortar parte das emendas às vésperas de 2026 — ano eleitoral crucial.

Mas o dilema é profundo: sem identificar os esquemas e os beneficiários das chamadas “emendas religiosas”, o governo corre o risco de apenas redistribuir o rombo. A máquina parlamentar, sustentada por transferências pouco transparentes, continua drenando recursos e enfraquecendo o Estado.

As novas investigações e o esforço do STF expõem o que já é chamado nos bastidores de “captura orçamentária” — um processo no qual parlamentares controlam fatias crescentes do orçamento público, muitas vezes de forma pessoal e opaca. A fronteira entre representação política e gestão criminosa nunca foi tão tênue.

A origem: o “Pix das emendas” como moeda política

O escândalo das emendas Pix nasceu em 2020, no auge da pandemia, como uma manobra do governo Jair Bolsonaro para ampliar o poder de barganha com o Congresso Nacional. O então presidente enfrentava um ambiente de isolamento político, ameaçado por pedidos de impeachment e pela perda de apoio parlamentar. A solução foi entregar o cofre da União aos aliados.

Naquele ano, sob o discurso da “agilidade” e da “desburocratização”, o governo criou uma modalidade de repasse direto de recursos federais a estados e municípios, via transferências especiais, sem necessidade de convênios, licitações complexas ou prestação de contas imediata.

Esses repasses — feitos pelo Tesouro direto para contas de prefeituras e governos estaduais — ficaram conhecidos como “emendas Pix”, em alusão ao sistema de transferências instantâneas criado pelo Banco Central.

Na prática, o dinheiro caiu em caixas únicos municipais, misturado a outras receitas locais. Isso tornou quase impossível rastrear a aplicação dos recursos, abrindo espaço para uma nova geração de esquemas de desvio e lavagem de dinheiro.

O apetite do Centrão e o nascimento do “orçamento secreto”

Com a aproximação do Centrão — bloco de partidos que passou a dominar a relação com o Executivo —, as emendas Pix se tornaram a principal moeda de troca entre o Planalto e o Congresso.

Bolsonaro, que havia sido eleito sob a promessa de combater a “velha política”, entregou o controle das emendas a figuras como Arthur Lira (PP-AL) e Ciro Nogueira (PP-PI).

O mecanismo foi aperfeiçoado e turbinado: primeiro, com o “orçamento secreto” (as chamadas RP9, de relator-geral), e depois com as emendas Pix, que se tornaram uma alternativa ainda mais difícil de fiscalizar.

Entre 2020 e 2022, foram liberados mais de R$ 44 bilhões em transferências especiais. Uma fatia expressiva foi parar em cidades pequenas, controladas por prefeitos aliados, igrejas, ou empresas de fachada. Em muitos casos, as obras nem saíram do papel.

O TCU, em relatórios de 2023 e 2024, identificou desvios sistemáticos e ausência quase total de controle, afirmando que o modelo “inviabiliza a rastreabilidade do dinheiro público”.

O rastro da impunidade e o papel das fintechs

O uso de fintechs e bancos digitais foi outro elemento-chave para o sucesso do esquema. As plataformas de pagamentos instantâneos permitiam movimentar grandes valores com baixa rastreabilidade, sem despertar alertas automáticos do sistema bancário tradicional.

A Polícia Federal, em relatórios recentes, identificou um padrão de transações cruzadas entre contas de prefeituras e pessoas físicas ligadas a gabinetes parlamentares — muitas delas sem justificativa fiscal ou contratual.

Segundo investigadores, as emendas Pix foram o “DNA financeiro” do que viria a se tornar a nova economia paralela da política: uma simbiose entre o poder público, empresas de fachada e redes de lavagem de dinheiro.

A tentativa de encobrir o rastro: a PEC da Blindagem

Quando as investigações começaram a avançar, a reação do Congresso foi imediata. Em 2024, líderes do Centrão apresentaram a PEC da Blindagem, que previa imunidade a parlamentares e dirigentes partidários contra investigações criminais.

A proposta foi rechaçada pela sociedade civil e arquivada no Senado, mas mostrou o tamanho do medo no Legislativo. Deputados e senadores sabiam que o cerco se fechava, especialmente com o Supremo Tribunal Federal e o TCU aprimorando as ferramentas de rastreamento de transferências públicas.

Cinco anos depois de sua criação, as emendas Pix se tornaram o símbolo da captura do Estado pelo Congresso. O modelo que começou como promessa de descentralização acabou concentrando poder nas mãos de poucos líderes políticos, que decidiram o destino de bilhões sem transparência.

O desafio é gigantesco: as emendas Pix criaram uma cultura de opacidade institucionalizada. E, mesmo após a morte de seus principais operadores, como Pacovan, a engrenagem continua viva — reinventada nas sombras digitais do orçamento público.

Por Cezar Xavier