Castello Branco anuncia por rádio o Ato Institucional-2, em 27 de outubro de 1965 — Foto: Arquivo/Agência Nacional

Sessenta anos atrás, em 27 de outubro de 1965, o presidente marechal Humberto Castelo Branco assinava o Ato Institucional nº 2 (AI-2), transformando o que seria uma transição militar provisória em um projeto autoritário de longo prazo. Sob o argumento de combater a “subversão”, o decreto revogou as eleições diretas para presidente, reduziu o sistema partidário a dois blocos controláveis e submeteu o Supremo Tribunal Federal (STF) à influência direta do Executivo.

O AI-2 marcou a ruptura definitiva com qualquer aparência de normalidade democrática. O que se seguiu foi um processo de erosão institucional planejada, em que o regime militar buscou neutralizar os freios e contrapesos do Estado brasileiro.

O fim do voto popular e o controle do Congresso

O decreto de 1965 transferiu ao Congresso Nacional, já purgado de opositores, o poder de eleger o presidente da República. A justificativa oficial falava em “estabilidade política”, mas, na prática, o objetivo era impedir o retorno das forças ligadas ao ex-presidente João Goulart, deposto no golpe de 1964.

Para garantir o domínio total, o AI-2 extinguiu o pluripartidarismo e impôs uma estrutura bipartidária artificial: a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido de apoio ao regime, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), oposição tolerada e vigiada. O bipartidarismo, longe de estimular o debate político, institucionalizou a censura e a simulação democrática.

O Congresso, formalmente mantido, passou a atuar como uma câmara de validação das vontades do Executivo, sob permanente ameaça de cassações e recessos forçados.

Soldados da Polícia do Exército vigiam o Congresso Nacional, fechado temporariamente pela ditadura em 1966 sob o respaldo do AI-2 (Correio da Manhã/Arquivo Nacional)

Intervenção no Supremo e o desmonte da independência dos Poderes

Menos lembrado, mas igualmente decisivo, foi o aumento do número de ministros do STF de 11 para 16. Com isso, Castelo Branco nomeou cinco novos magistrados leais ao regime, assegurando maioria automática no tribunal e eliminando a resistência judicial às arbitrariedades do governo.

A manobra teve caráter político explícito. O Supremo vinha concedendo habeas corpus a presos políticos e contestando inquéritos militares irregulares, o que irritou a ala mais dura das Forças Armadas. Ao alterar a composição da Corte, o Executivo aniquilou a autonomia do Judiciário e consolidou o princípio da obediência institucional à “Revolução de 1964”.

O gesto também antecipou um padrão recorrente em regimes autoritários: a cooptação do Judiciário como etapa de consolidação do poder — uma tática que décadas depois seria observada em governos populistas da América Latina e que, mais recentemente, ecoou em discursos de extrema direita no Brasil.

Da derrota eleitoral ao fechamento político

O endurecimento não foi gratuito. Em outubro de 1965, eleições estaduais mostraram que o regime não tinha o apoio popular esperado: a oposição venceu em Minas Gerais e na Guanabara (atual Rio de Janeiro). A vitória de Israel Pinheiro e Negrão de Lima, ambos ligados a Goulart, alarmou os militares.

O AI-2 foi a resposta: uma reação autoritária à derrota eleitoral. O decreto bloqueou qualquer possibilidade de alternância de poder e deu início à era das eleições indiretas para governadores (pelo AI-3, de 1966) e, posteriormente, à fase dos “biônicos”, parlamentares e chefes de Executivo indicados pelo regime.

A promessa de que os militares devolveriam o poder em 1966 foi enterrada. O Estado de exceção se normalizou.

A escalada do autoritarismo

O general Castelo Branco que enterrou a hipótese de transição ao decretar o AI-2. Foto: Correio da Manhã/Arquivo Nacional

O AI-2 também autorizava o presidente a decretar estado de sítio sem aval do Congresso, intervir em estados e municípios e suspender o funcionamento do Legislativo. Em 1966, um ano depois de sua edição, tropas do Exército fecharam o Congresso Nacional, consolidando a submissão dos poderes civis.

Com o tempo, os mecanismos criados pelo AI-2 pavimentaram o caminho para o AI-5 de 1968, que institucionalizou a censura, as cassações, as torturas e a repressão sistemática. O que começou como uma manobra para conter “instabilidades políticas” terminou em uma ditadura plena, sustentada por medo e coerção.

O legado do autoritarismo e os riscos da erosão democrática

O AI-2 foi formalmente revogado em 1967, com a Constituição imposta pelos militares, mas seus efeitos perduraram por duas décadas. O modelo de centralização do poder, a manipulação das regras eleitorais e o controle sobre o Judiciário se tornaram a espinha dorsal da ditadura até 1985.

Para o historiador Mateus Gamba Torres, da Universidade de Brasília, a lembrança do AI-2 é vital num momento em que o autoritarismo volta a testar os limites da democracia brasileira:

“Os regimes autoritários sempre começam questionando o papel do Congresso e do Supremo. Quando o Executivo decide que as leis e as instituições atrapalham o país, ele está, na prática, destruindo a democracia.”

Sessenta anos depois, o AI-2 segue como advertência histórica — uma lembrança de que a erosão democrática não acontece de um dia para o outro, mas avança por meio de decretos, reformas e discursos que prometem “salvar a nação”.

Sessenta anos após o AI-2, o Brasil ainda enfrenta o desafio de proteger suas instituições da retórica autoritária que, em nome da ordem, tenta justificar o fim da democracia.

Cezar Xavier com informações da Agência Senado