Connolly chega ao castelo de Dublin após a vitória esmagadora e serena sobre a direita

A eleição de Catherine Connolly como a 10ª presidente da Irlanda — e a terceira mulher a ocupar o cargo — marca uma virada histórica no humor político do país. Aos 68 anos, a parlamentar independente venceu com 63,4% dos votos, o melhor resultado presidencial desde 1938. A ex-deputada e advogada superou a ex-ministra Heather Humphreys, do partido Fine Gael, de centro-direita, que obteve apenas 29,5%.

A magnitude da vitória de Connolly surpreendeu até seus apoiadores, os cinco partidos da tradicionalmente fragmentada esquerda. Inicialmente considerada uma candidata periférica, ela emergiu como a voz de um eleitorado frustrado com o imobilismo do centro político, com a crise social crescente e com a distância entre as elites governantes e a vida cotidiana dos irlandeses.

A eleição, realizada na sexta-feira (24), teve participação inferior à média histórica — reflexo de um profundo desencanto da população com o sistema político. Mais de 12% dos votos foram anulados, e cerca de um terço do eleitorado optou pela abstenção. O alto número de votos inválidos foi interpretado como sinal de protesto e de crítica às elites políticas que dominam o país há décadas. A indicação restritiva de candidaturas, eliminando uma importante representante conservadora da disputa, também explica o alto índice de abstenções.

A fadiga do centro e a fragmentação do sistema

A vitória de Connolly é, em grande parte, fruto de uma exaustão coletiva com o duopólio Fianna Fáil–Fine Gael, que domina a política irlandesa desde a independência. Após mais de uma década de governo de centro-direita, marcada por crescimento econômico desigual e crises habitacional e climática, grande parte da população passou a ver essas legendas como símbolos de continuidade e complacência.

Ela disse ao público que seria “uma voz pela paz, uma voz que se baseia em nossa política de neutralidade e articula a ameaça existencial representada pelas mudanças climáticas”.

A coalizão que atualmente governa a Irlanda — formada por Fine Gael, Fianna Fáil e o Partido Verde — enfrenta queda de popularidade diante do aumento do custo de vida, da crise habitacional e do desgaste provocado por políticas de austeridade fiscal. Ao mesmo tempo, a esquerda alternativa — representada por independentes e pelo Sinn Féin — vem ganhando força, especialmente entre os eleitores mais jovens e urbanos.

O próprio primeiro-ministro, Micheál Martin, admitiu após o pleito que o sistema de nomeação presidencial é “restritivo” e que o alto número de votos nulos (12,9%) deve servir de alerta. Essa insatisfação generalizada foi canalizada pela campanha de Connolly, que se apresentou como voz de ruptura democrática e inclusão popular, sem depender das grandes máquinas partidárias.

Connolly capitalizou esse sentimento ao defender um discurso de soberania nacional, neutralidade internacional e combate à desigualdade, temas que ressoaram num eleitorado cada vez mais crítico ao alinhamento automático da Irlanda com a União Europeia e os Estados Unidos.

Campanha: discurso independente e mobilização silenciosa

A candidatura de Catherine Connolly começou sem apoio partidário robusto e com pouca visibilidade nacional. Mesmo assim, ela conseguiu unificar parte da esquerda fragmentada e conquistar respaldo de parlamentares e movimentos sociais. Sua campanha, baseada em mensagens de ética, escuta e inclusão, destacou-se pelo tom sereno e pela recusa em personalizar ataques. O tom firme contrastou com o discurso vago de sua rival, percebido como burocrático e sem propósito.

Enquanto Humphreys apostava em sua experiência administrativa e no apoio da coalizão governista, Connolly se apresentou como voz autêntica de uma “nova República”, comprometida com causas ambientais, com a política de neutralidade e com uma crítica aberta ao militarismo europeu e à desigualdade social.

Com o recuo do candidato Jim Gavin, do Fianna Fáil, no final da campanha, e a ausência de uma alternativa conservadora forte, a disputa acabou polarizada entre duas visões de país: a continuidade tecnocrática do centro e a promessa de renovação ética e política da esquerda independente.

Seu apelo à neutralidade da Irlanda em conflitos internacionais, inclusive nas guerras que envolvem EUA e União Europeia, ressoou fortemente entre jovens e setores progressistas. Também pesou sua defesa dos direitos das mulheres e dos refugiados, temas que tocam um eleitorado urbano e cosmopolita em transformação.

A candidata tornou-se símbolo de uma nova esquerda irlandesa, não ligada a dogmas partidários, mas a uma ética de serviço público e responsabilidade social. Sua biografia — advogada, psicóloga e política de trajetória independente — reforçou a imagem de autenticidade e coerência moral, um contraste com o tecnocratismo do establishment.

Um país dividido e um sistema em transição

Ainda que o resultado represente um mandato contundente, a eleição também revelou profundas divisões internas. O setor conservador, sem candidatos viáveis, estimulou o voto nulo em protesto, demonstrando que parte da população se sente “sem representação”. A própria Humphreys denunciou ter sofrido abusos sectários, expondo feridas religiosas e identitárias ainda abertas na sociedade irlandesa.

O que resta agora é um centro esvaziado de crença em qualquer coisa além de seu suposto direito natural ao poder; uma esquerda ampla, com impulso e legitimidade simbólica, mas ainda sem um programa coeso de governo; e uma massa dispersa de desiludidos, insatisfeitos e desengajados. Connolly herda, portanto, um mandato de esperança e ceticismo ao mesmo tempo: seu desafio será reconectar o Estado com uma cidadania cada vez mais descrente das instituições tradicionais.

A nova esquerda e o desafio da ambiguidade

Connolly venceu com um discurso de unidade e escuta, mas agora precisará equilibrar sua postura crítica da União Europeia com a realidade de um país fortemente integrado ao bloco. Sua habilidade política — que muitos analistas descrevem como uma forma de “ambiguidade inteligente” — poderá ser crucial para preservar a popularidade conquistada.

Ao prometer ser “uma presidente que ouve, reflete e fala quando necessário”, ela sinalizou que pretende ocupar um espaço simbólico, não partidário, mas transformador. Se conseguir traduzir essa promessa em prática, poderá consolidar um novo ciclo na política irlandesa — mais plural, descentralizado e atento às demandas sociais.

A vitória de Catherine Connolly foi, ao mesmo tempo, um repúdio ao poder estabelecido e um gesto de fé na possibilidade de reconstrução democrática. Ela capitalizou a insatisfação com os velhos partidos, mas também ofereceu uma visão esperançosa de um país mais inclusivo e justo.

Por Cezar Xavier