Em 2021, Ana Lúcia Lopes, hoje com 50 anos, perdeu o companheiro, o fotógrafo Cláudio da Silva, o que fez com que seu filho, Bento, que tinha 4 anos, ficasse órfão de pai. Foto: Ana Lucia/Arquivo Pessoal

Além das mais de 700 mil mortes diretas por covid-19 no Brasil, há uma tragédia silenciosa: 284 mil crianças e adolescentes perderam pais, avós ou responsáveis entre 2020 e 2021. Uma pesquisa, conduzida por cientistas do Imperial College London, da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade de Oxford e dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos, traça um mapa detalhado da vulnerabilidade social gerada pela pandemia.

Os autores alertam que a orfandade pandêmica é uma emergência social e humanitária que permanece invisível nas políticas públicas brasileiras. O artigo publicado na revista científica The Lancet Regional Health – Americas destaca a ausência de um programa nacional de proteção ou compensação financeira voltado a essas crianças, com exceção de iniciativas isoladas em alguns estados — como o Ceará, que concede um auxílio mensal de R$ 500 a órfãos da covid-19.

Para os pesquisadores, a falta de medidas estruturadas amplia o risco de pobreza, evasão escolar, trabalho infantil e traumas psicológicos. O estudo defende a criação de uma estratégia intersetorial, com envolvimento dos sistemas de saúde, assistência social e educação, para mitigar os efeitos de longo prazo.

A desigualdade da perda

O levantamento expõe não apenas a magnitude da orfandade, mas também as profundas disparidades regionais. Os estados com maiores taxas de orfandade por mil crianças são Mato Grosso (4,4), Rondônia (4,3) e Mato Grosso do Sul (3,8). Já os menores índices aparecem no Rio Grande do Norte (2,0), Santa Catarina (1,6) e Pará (1,4).

Essas diferenças refletem o padrão desigual da mortalidade por covid-19 e as distintas estruturas demográficas e socioeconômicas entre as regiões. Em áreas mais pobres e com menor cobertura vacinal, o impacto foi desproporcionalmente alto.

A distribuição desigual reflete a vulnerabilidade social e racial da pandemia: a maioria das vítimas era composta por trabalhadores informais, de baixa renda e que não puderam se isolar.

De acordo com a coautora Lorena Barberia, da USP, os resultados expõem como a pandemia agravou desigualdades históricas de renda, raça e gênero. A maioria dos cuidadores falecidos pertencia a grupos de menor renda e exercia atividades presenciais essenciais — como transporte, alimentação e serviços de limpeza —, que não puderam ser interrompidas durante o isolamento.

“Essas mortes não atingiram apenas famílias, mas romperam estruturas de cuidado. Muitas crianças ficaram sem o suporte de quem garantia o sustento e o afeto cotidiano”, afirma o estudo.

“Essas mortes impactam gerações inteiras, e expõem como as desigualdades sociais se perpetuam até nas tragédias sanitárias”, afirma o estudo.

70% perderam o pai; 160 ficaram órfãos de ambos os pais

Entre as 149 mil crianças e adolescentes que perderam pai, mãe ou ambos os pais, a maioria — 70,5% — ficou órfã do pai, 29,4% da mãe e 160 sofreram orfandade dupla. Outras 135 mil perderam cuidadores secundários, como avós e tios responsáveis diretos pelo cuidado e sustento cotidiano.

No total, os pesquisadores estimam que 1,3 milhão de crianças e jovens de 0 a 17 anos sofreram a perda de ao menos um cuidador durante a pandemia, considerando todas as causas de morte, e não apenas a covid-19.

O estudo destaca que 70% das orfandades por covid-19 foram paternas, refletindo a maior letalidade da doença entre homens.

O estudo comparou suas estimativas com dados administrativos reais — como certificações de óbito e de nascimento — com os sistemas oficiais, que capturam apenas entre 30% e 55% dos casos reais de orfandade.

Ausência de políticas e reparação

Apesar da dimensão do problema, o Brasil ainda não possui uma política nacional de apoio aos órfãos da covid. Ainda que o país tenha sido pioneiro ao incluir o campo “dependentes menores” nas declarações de óbito, a ausência de digitalização e integração desses dados impede respostas rápidas.

Recentemente, a Lei nº 14.717/2023 criou uma pensão especial para filhos de vítimas de feminicídio — um passo importante, mas insuficiente diante da escalada da crise. Para os pesquisadores, é urgente uma política de proteção efetiva, que garanta acesso à renda, apoio psicossocial, educação e acompanhamento contínuo.

Projetos que tramitam no Congresso — como o PL 2.180/2021, que propõe um fundo de amparo — seguem paralisados. No âmbito federal, o debate sobre medidas de proteção não avançou.

Entidades como a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico) e a Coalizão Orfandade e Direitos pressionam por reparação e reconhecimento. Para elas, o Estado deve ser responsabilizado pelo abandono dessas crianças.

Justiça e memória

O Ministério Público Federal move uma ação civil pública que pede indenizações de R$ 100 mil por vítima fatal e R$ 50 mil por sequelas graves, além de R$ 1 bilhão ao Fundo Federal dos Direitos Difusos por dano moral coletivo.

Para organizações de vítimas, a reparação é também um ato de memória e de justiça histórica. “Sem memória não há verdade, e sem verdade não há justiça”, afirmam os movimentos.

Um legado que o Brasil precisa encarar

Os pesquisadores alertam que a orfandade provocada pela covid-19 deixará marcas duradouras e exige resposta imediata do Estado — com políticas de renda, habitação, educação e saúde voltadas às crianças afetadas.

“O país precisa reconhecer essa herança e garantir que essas crianças não carreguem sozinhas o peso da pandemia”, conclui o estudo.

A análise conclui que, embora o Brasil tenha avançado na vacinação e na redução da mortalidade pela covid-19, os efeitos sociais da pandemia continuarão por anos. Para os autores, reconhecer e reparar o impacto da orfandade é fundamental para reconstruir o tecido social.

“É urgente que o Estado brasileiro incorpore a proteção a crianças órfãs da pandemia em sua agenda nacional”, afirma o artigo, destacando que o país dispõe de instrumentos como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Cadastro Único capazes de identificar e atender esse público.

Por Cezar Xavier