Saúde e adoecimento no capitalismo: Quando cuidar do inconsciente virou produto
Nos tempos da análise instantâne, muito corriqueiro em redes sociais, a psicanálise passa a ser rotulada de pseudociência. A crítica é superficial, mas não chega ao cerne da questão. Quase sempre rasa, ela se baseia no princípio de que Freud não pode ser medido em provetas, gráficos ou laboratório, logo não serviria mais. Porém, talvez o problema não seja a psicanálise em si, mas como o capitalismo engoliu o subconsciente e a subjetividade dos indivíduos, como denunciou Basaglia (1968), em seu livro intitulado “A instituição negada”.
Na sociedade atual, os indivíduos não são mais acometidos principalmente pelos sofrimentos psíquicos que afetavam o ego, id e superego da época freudiana. De acordo com Byung-Chul Han, não sofremos mais nas mãos de um pai tirano que nos proibia, mas sim pelo excesso de positividade: “você consegue”, “você pode”, “seja você mesmo”, “basta se esforçar”. A repressão anterior, que expressava a negatividade, tornou-se autoexploração. O medo de errar foi trocado pelo medo de não performar o tempo todo. Isso resultou em depressão, burnout e ansiedade crônica.
A psicanálise surgiu para tratar sujeitos afetados pela proibição. Contudo, o sujeito moderno é permeado por excesso de estímulos, liberdade aparente e autocobrança excessiva. A depressão não vem mais de um proibidor revelado, de um “não” que “sufoca”, mas de um “sim” infinito que consome isso sendo o mal estar da civilização que nos alertava Freud. Isso faz com que muita gente entenda que a psicanálise não funcione, mas, na verdade, foi a doença que nos acometeu que evoluiu, como um vírus. A depressão nos adoece por nos obrigar a performar felicidade a todo momento.
O mais trágico é que o próprio inconsciente, que antes era um espaço de refúgio, conflito e desejo, foi tomado por algoritmos, marketing e redes sociais. Desejamos o que nos foi encomendado desejar. Adoecemos sorrindo, com as redes sociais organizadas e as metas de produtividade batidas.
A mercantilização da subjetividade e da vida é um processo que nos mostra como o capitalismo evoluiu para uma camada mais profunda, tornando-se enraizado de tal forma que o esgotamento não é apenas do tempo e do trabalho – a exploração agora não é só da força de trabalho, mas da própria subjetividade, dos desejos e do inconsciente.
Segundo Marx, em sua obra manuscritos econômicos-filosóficos, no capitalismo ocorrem quatro tipos de alienação do trabalhador: do produto do seu trabalho, do ato de trabalhar (que se torna uma atividade estranha e penosa), de sua essência como ser produtivo criativo e dos outros seres humanos. Portanto, nessa nova forma de adoecimento, o trabalhador sofre uma alienação profunda de si mesmo, de seus desejos e conflitos inconscientes, que agora são ditados por algoritmos e marketing.
Isso nos leva a uma nova frente de conflito trabalho adequado e propriedade privada. Se a luta de classes tradicional era entre burguesia e proletariado pela posse dos meios de produção, hoje há uma luta pela posse dos meios de subjetivação (as plataformas digitais, a indústria cultural, os algoritmos), ou seja, quem controla esses meios controla o que desejamos, quem somos e como adoecemos. O que não exclui a luta no âmbito de posses mas a coplexifica.
Então, no fim, não é a psicanálise que se tornou obsoleta, mas sim o capitalismo que mudou a própria natureza do sofrimento humano. A doença mental (depressão, burnout, ansiedade) não é mais apenas um sintoma de conflitos individuais reprimidos, mas uma resposta direta e sintomática às contradições e demandas do modo de produção capitalista contemporâneo.
Podemos dizer que a “autoexploração” é a forma perfeita de exploração, pois o explorador não é mais um chefe externo, mas uma voz internalizada que diz “você pode mais”. Dessa forma, o sistema se torna muito mais eficiente e difícil de ser combatido, pois a culpa pelo fracasso é sempre individualizada (“eu não me esforcei o suficiente”), e não atribuída a uma estrutura social e econômica doente.
Referências
FREUD, Sigmund. Freud (1923-1925)-Obras completas volume 16: O Eu e o Id,” Autobiografia” e outros textos. Editora Companhia das Letras, 2011.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada, 2015.
MARX, Karl. Capital volume 1. Lulu. com, 2018.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo Editorial, 2015. Em especial a seção “Trabalho e propriedade privada”
*Engenheiro de Alimentos (UFPB), Mestre em Tecnologia Agroalimentar (UFPB), Doutorando em Engenharia de Alimentos (USP). Militante do Partido Comunista do Brasil em João Pessoa-PB.