Qual a tarefa dos comunistas brasileiros na luta contra o capacitismo?
O 16º Congresso do PCdoB foi um momento crucial para debates e para a construção da tática e da estratégia comunista no Brasil. No que se refere à realidade das pessoas com deficiência, os camaradas fluminenses Flavio de Santana Bento Junior e Fred Siqueira contribuíram com excelentes artigos. Este texto busca dialogar com ambos e adicionar reflexões sobre o papel do Partido na luta anticapacitista.
Comecemos com uma breve descrição da realidade das pessoas com deficiência no país: De acordo com o último censo do IBGE sobre o tema, 7,3% da população brasileira tem deficiência, com uma proporção notável de 9% de nordestinos com deficiência, maior que a média nacional. A exclusão é ainda mais evidente na educação: 63,1% das PcDs (Pessoas com Deficiências) com 25 anos ou mais não concluíram o ensino fundamental; apenas 25,2% das PcDs alcançaram o ensino médio, comparado a mais de 50% das pessoas sem deficiência; apenas 7,4% das PcDs concluíram o ensino superior, contra 19,5% das pessoas sem deficiência.
Essa situação não é um mero acaso ou tragédia pessoal. Pelo contrário, a exclusão das PcDs, impulsionada pelo capacitismo (preconceito contra pessoas com deficiência), é uma ferramenta do capitalismo para manter a exploração da classe trabalhadora. Em seu artigo, “A Marxist Approach to Disability: Notes on Marx’s Relative Surplus Population,” Vinícius Neves de Cabral explica o mecanismo: o capacitismo garante que as PcDs se tornem parte do grupo que Marx chama de “pauperizados,” uma parcela do “exército industrial de reserva”. Por não conseguirem trabalhar, são vistos como um “peso socioeconômico” que o restante da classe trabalhadora deve carregar. Isso prejudica as condições de vida de ambos os grupos e reduz sua capacidade de barganha nas disputas de classe.
Em outras palavras, as PcDs não são incapazes por definição. A sociedade capitalista é estruturada para impedi-las de atuar em equidade de condições. Essa exclusão é útil para os capitalistas, pois as PcDs dependem do suporte socioeconômico de seus familiares. Isso pressiona os trabalhadores, que precisam sustentar um familiar a mais ou se dedicar ao trabalho de cuidado não remunerado (feito, em geral, pelas mulheres), diminuindo sua capacidade de reivindicação. Essa é mais uma das “ratoeiras” que as classes dominantes usam para manter a classe trabalhadora sob seu jugo, gerando, naturalmente, conflitos entre oprimidos e opressores.
O Brasil tem uma história potente de luta das PcDs. Após a redemocratização, associações de ajuda mútua evoluíram para organizações políticas lideradas pelas próprias PcDs, como instrumentos de luta por direitos. Essa efervescência, com a liderança de militantes como o histórico militante marxista Cândido Pinto de Melo, garantiu a primazia de entidades de PcDs sobre entidades para PcDs. Essa luta resultou na conquista de direitos na Constituição de 1988 e em avanços posteriores, como a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015).
No entanto, essa geração de lutadores não conseguiu construir uma entidade unificada nacional que congregasse organizações de todos os tipos de deficiência. O livro “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil”, lançado em 2010 pela Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, destrincha esse processo, detalhando como a decisão tomada no 3º Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, em 1984, levou ao fim da perspectiva de uma entidade unificada, priorizando a organização por tipo de deficiência. Embora essa segmentação tenha gerado avanços e legislações específicas, também causou problemas, como atritos entre organizações (como se pode ver em conflito recente entre a Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas – Autistas Brasil e a Rede Brasileira de Inclusão – Rede-In) e a exploração da luta anticapacitista por oportunistas políticos de direita. As PcDs e suas famílias carecem de uma direção política unificada.
O campo progressista, por sua vez, continua distante dessa luta. A prova mais recente disso são as mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) feitas pelo governo federal, sob pressão de políticos, ideólogos e economistas fiscalistas. As alterações no benefício, que geraram perícias apressadas e cortes irregulares, jogaram a população mais vulnerável (idosos e PcDs em situação de miserabilidade) na incerteza. As medidas ainda desgastaram a imagem do governo frente à sua base, pois os mesmos políticos (do centrão e da extrema direita) que pressionam diuturnamente o governo a cortar gastos com BPC utilizaram as medidas do governo como propaganda contra o mesmo, acusando-o de insensibilidade com os mais frágeis. A falta de atenção do nosso campo a esse tema e o vácuo de lideranças com deficiência em posições de poder no campo progressista é um erro político que precisa ser corrigido.
Os comunistas, vanguarda histórica da classe trabalhadora, têm o dever de liderar a virada anticapacitista no campo progressista. O primeiro passo é iniciar o debate para consolidar um pensamento anticapacitista de novo tipo, que chamo de capacitismo emancipacionista.
Esse processo já está em andamento no Partido, com o profundo e qualificado debate das camaradas feministas sobre o trabalho de cuidado não remunerado e a criação da Frente Anticapacitista da UJS em seu 22º Congresso. Além disso, existe um subsídio teórico robusto, construído por estudiosos brasileiros e estrangeiros que se baseiam nos clássicos marxistas. A área dos Disability Studies (Estudos da Deficiência) tem fortes raízes em conceitos marxistas, que foram obscurecidas por influências pós-modernistas, como aponta Ana Souza Pereira em seu artigo “A vanguarda marxista nos estudos sobre a deficiência”.
Para fortalecer esse processo e torná-lo parte integrante da política de revigoramento partidário, e não apenas um conjunto de iniciativas localizadas, propus sete emendas ao Projeto de Resolução Política do 16º Congresso do Partido. É crucial que o debate a esse respeito seja protagonizado pelos quadros do Partido que têm deficiência, que já existem e desempenham papéis de destaque na militância. Com essa formulação teórica e política, o Partido deve desenhar uma estratégia de fortalecimento e inserção nos movimentos de PcDs, promovendo a síntese e o intercâmbio de ideias; Combater desvios e divisionismos que hoje permeiam algumas dessas entidades; Formar sua militância sem deficiência no tema, começando por quadros com representação no legislativo e executivo; e por fim ter uma política de quadros com deficiência para captar e formar militantes, com o objetivo de, a médio prazo, construir uma bancada de políticos com deficiência.
O mote histórico da luta das PcDs, “Nada sobre nós sem nós,” é mais do que uma palavra de ordem; ele representa a luta pela democratização da sociedade brasileira. Essa luta só se realiza plenamente com um Brasil soberano e socialista, e cabe ao PCdoB liderar o povo na derrota do consórcio entre o capitalismo e o capacitismo.
*Militante do PCdoB na UFMG. Recentemente eleito membro do Comitê Municipal do PCdoB-BH (2025 – 2027).