O desafio da revolução brasileira e a centralidade da luta antirracista

O 16º Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) ocorre em um momento decisivo, em que o Brasil atravessa profundas contradições sociais, políticas e civilizatórias. É tempo de reafirmar e radicalizar o nosso programa revolucionário, à luz das contradições do capitalismo dependente e da opressão histórica forjada pelo colonialismo, pelo racismo e pelo patriarcado.

Incorporando a luta dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana como bandeira essencial da luta socialista, entendendo que não há projeto nacional emancipador sem o enfrentamento do racismo estrutural e da colonialidade do poder.

 A luta de classes no Brasil se expressa também como luta contra o racismo institucional, o epistemicídio e a destruição sistemática dos modos de vida não-hegemônicos, especialmente os modos de ser, viver e resistir dos povos negros, de terreiro de matriz africana. Essa luta é material, cultural, ambiental e civilizatória.

Não se trata de uma pauta identitária secundária, mas de uma linha de frente da luta de classes e da disputa de projeto de civilização. A violência que atinge os povos tradicionais de matriz africana não é casual: ela é parte constitutiva de um sistema que se alimenta da destruição do diverso, da imposição de uma lógica eurocentrada, cristã, racista e capitalista.

Conceituando os Povos Tradicionais de Matriz Africana, sujeitos políticos e civilizatórios: identidade, ancestralidade e resistência

Os povos e comunidades tradicionais de matriz africana, segundo o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável e a cartilha conceitual, publicada pelo Governo Federal, produzida em parceria com o PNUD, são coletividades organizadas em torno de saberes ancestrais e milenares, valores civilizatórios afrocentrados, práticas de solidariedade, cosmopercepção e organização social próprias, além de formas de gestão coletiva de seus territórios, recursos naturais e demais bens comuns.

São herdeiros da diáspora africana que resistiram à escravidão e ao genocídio, reafirmando sua existência política e salvaguardando, por meio das Unidades Territoriais Tradicionais, terreiros, quilombos urbanos, casas de santo, redes de axé e núcleos comunitários autônomos, seus modos de ser, fazer e saber.

A Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, reconhece essas populações como sujeitos de direitos diferenciados, cuja autodeterminação e consulta prévia são essenciais para qualquer política que os afete. O Decreto 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, e o Decreto 12.278/2024, que institui a Política Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro e de Matriz Africana, reforçam a necessidade de políticas públicas baseadas na escuta, no protagonismo e no reconhecimento da diversidade cultural do povo brasileiro.

Mas esse reconhecimento formal não tem sido suficiente para barrar as violências sistemáticas que recaem sobre esses povos. Vivem sob ataque permanente: de setores do Estado, do fundamentalismo religioso, do agronegócio e do racismo institucional.

Marxismo-leninismo e a luta contra a hegemonia eurocentrada

Desde Lenin, aprendemos que a luta contra o imperialismo e a dominação precisa ser travada em múltiplos frontes. No Brasil, a luta contra o racismo, contra o colonialismo interno e contra o epistemicídio deve ser parte inseparável do nosso programa de transição ao socialismo.

A hegemonia eurocentrada que domina as instituições brasileiras — da escola ao judiciário, da política à religião — é incompatível com a diversidade sociocultural que constitui a identidade do povo brasileiro. O PCdoB, enquanto partido revolucionário e anti-imperialista, deve afirmar com coragem a bandeira da valorização da diversidade sociocultural dos povos tradicionais como parte de um projeto de Nação verdadeiramente popular e soberano.

A cosmovisão africana, a auto-organização social e política dos terreiros, os valores civilizatórios negros, a economia do cuidado, a circularidade, o matriarcado, a ancestralidade são princípios contra-hegemônicos que desafiam diretamente o produtivismo capitalista, o individualismo burguês e o patriarcalismo ocidental. São exemplos efetivos de que um outro mundo e uma outra forma de viver e organizar a sociedade são plenamente possíveis. Por isso representam a possibilidade real de ruptura do sistema capitalista, e, exatamente por isso, são diuturnamente combatidos, criminalizados, demonizados, perseguidos, invisibilizados e exterminados, no Brasil, em nome da manutenção desse mesmo sistema, capitalista e eurocentrado, que se vê em cheque.

Genocídio, etnocídio e epistemicídio: três eixos da violência colonial e capitalista

A realidade concreta enfrentada pelos povos de matriz africana pode e deve ser nomeada por aquilo que é: um processo contínuo de genocídio, etnocídio e epistemicídio, conforme denunciado por lideranças como Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Kabengele Munanga e reafirmado pelo movimento negro e pelas organizações de matriz africana.

● Genocídio é a prática da eliminação física de um povo.  O extermínio da juventude negra nas periferias, a violência policial seletiva, a criminalização dos terreiros e dos corpos negros, a perseguição e violência contra as pessoas de axé são formas evidentes desse genocídio em curso.

● Etnocídio é a destruição da cultura de um povo. O racismo religioso, com a desvalorização da religiosidade de matriz africana e a repressão simbólica contra suas práticas são expressões do etnocídio cotidiano operado pelo Estado e pela hegemonia cristã-ocidental.

● Epistemicídio, como definiu Boaventura de Sousa Santos, é o apagamento dos saberes ancestrais, da filosofia, da medicina, das cosmologias dos povos oprimidos. É a exclusão dos saberes africanos das universidades, dos currículos escolares, das políticas públicas.

Esse tripé de destruição é funcional à reprodução do capitalismo racializado e colonial brasileiro, pois impede a afirmação de modelos alternativos de vida, de resistência e de poder. A destruição dos povos de matriz africana é, portanto, parte da estratégia do capital de consolidar sua hegemonia sobre o território, os corpos e as mentes.

Materialismo Histórico-Dialético e a Questão Racial-Civilizatória

Sob a lente do materialismo histórico e dialético, o racismo não é uma “ideologia” autônoma, mas sim uma superestrutura funcional à acumulação capitalista e à reprodução das relações de dominação de classe. A formação do capitalismo brasileiro ocorreu por meio do trabalho compulsório dos povos africanos escravizados e da criminalização posterior de suas expressões religiosas, culturais e organizativas. O Estado burguês moderno brasileiro sempre foi um agente do racismo estrutural e da colonialidade do poder.

Como alertou Clóvis Moura, o racismo é uma tecnologia de dominação de classe que incide de forma brutal sobre os corpos negros e suas formas coletivas de organização. Já Frantz Fanon, em “Os Condenados da Terra”, nos lembra que não há verdadeira revolução sem a libertação dos povos racializados da lógica colonial e de sua autonegação.

Portanto, a defesa dos povos de matriz africana não é identitarismo, mas sim prática revolucionária enraizada na luta contra a opressão de classe e de raça, articulada na realidade concreta de um povo marcado pela diáspora, pela violência estatal e pelo apagamento histórico.

*Membro do Comitê Estadual do PCdoB-RS; Presidente do PCdoB Municipal do Rio Grande (RS); Servidor Público Municipal de Rio Grande. Vice-presidente da UNEGRO/RG.