Paulo Gonet. Foto: Antonio Augusto/STF

O procurador-geral da República, Paulo Gonet, reafirmou que o núcleo crucial da trama golpista — formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras sete autoridades aliadas — planejou ações coordenadas de ruptura da ordem democrática. Ele também voltou a defender a punição dos réus, julgados a partir desta terça-feira (2) pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e afirmou que não reprimir criminalmente tentativas dessa ordem “recrudesce ímpetos de autoritarismo e põe em risco o modelo de vida civilizado”.

Ao iniciar sua fala, Gonet destacou que no atual julgamento “a democracia do Brasil assume a sua defesa ativa contra a tentativa de golpe, apoiada em violência ameaçada e praticada. Nenhuma democracia se sustenta se não contar com efetivos meios para se contrapor a atos orientados à sua decomposição”.

O procurador-geral da República se contrapôs a argumentos que buscam minimizar a trama pelo fato de o golpe não ter se concretizado. Nesse sentido, reforçou que a ordem constitucional “dispõe de meios institucionais para talhar investidas contra ela própria”, mas que “nenhuma providência jurisdicional é de valia contra a usurpação do poder pela força bruta, que aniquila a organização regular, desejada e arquitetada pela cidadania expressa pelo seu poder constituinte”.

Em casos assim, completou, “se a intentona vence pela ameaça do poderio armado, ou pela sua utilização, efetivamente não há o que a ordem derruída possa, juridicamente, contrapor”. Por outro lado, ponderou que a defesa da ordem democrática “acha espaço no direito democrático para se reafirmar, avantajar e dignificar quando o ataque iniciado contra ela não se consuma”.

Ele acrescentou que “as afrontas acintosas e belicistas contra a ordem constitucional democrática podem assumir formas diversas” e que “golpes podem vir de fora da estrutura existente de poder, como podem ser engendrados pela perversão dela própria”.

Ímpetos autoritários

Ao adentrar os fatos que demonstram a coordenação dos atos voltados à ruptura democrática, Paulo Gonet salientou que “o inconformismo com o término regular do período previsto de mando costuma ser fator deflagrador de crise para a normalidade democrática” e afirmou que “não reprimir criminalmente tentativas dessa ordem — como mostram relatos de fatos daqui e do estrangeiro — recrudesce ímpetos de autoritarismo e põe em risco o modelo de vida civilizado”.

O PGR também destacou ser inadmissível “tramas urdidas e postas em prática por meio de atos coordenados e sucessivos, conducentes à perturbação social, com predisposição a medidas de força desautorizadas constitucionalmente, a materialização da restrição dos poderes constitucionais e a ruptura com preceitos elementares da democracia, como o respeito à vontade do povo, expressa nos momentos eleitorais”.

Continuando seu discurso, ressaltou que “o panorama espantoso e tenebroso da denúncia são fenômenos de atentado, com relevância criminal, contra as instituições democráticas” que “não podem ser tratados como atos de importância menor, como devaneios utópicos anódinos, com aventuras inconsideradas”. O que está em julgamento, enfatizou, “são atos que hão de ser considerados graves enquanto quisermos manter a vivência de um Estado democrático de direito”.

Plenário do STF. Foto: Fábio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Gonet também apontou que uma tentativa de golpe de Estado não acontece “sem que se articulem fatos e eventos múltiplos de ocorrência estendida no tempo, que conformam o comportamento punido pela lei. Um golpe que se consuma, a fratura do regime constitucional, se distingue pelo efetivo apoderamento da estrutura estatal, à margem dos mecanismos previstos na ordem jurídica”.

Tal tentativa, disse, depende de eventos que, “desligados entre si, nem sempre impressionam sob o ângulo dos crimes contra as instituições democráticas. Mas que vistos de seu conjunto, destapam uma unidade na articulação de ações ordenadas ao propósito do arbítrio e do desbaratamento das instituições democráticas”.

Contra os que dizem ser preciso elementos que liguem mais diretamente Bolsonaro aos atos golpistas, Gonet, sem citá-lo, declarou: “para que a tentativa se consolide, não é indispensável que haja ordem assinada pelo presidente da República para a adoção de medidas explicitamente estranhas à regularidade constitucional”. E acrescentou que a tentativa “se revela na prática de atos e ações dedicadas ao propósito da ruptura das regras constitucionais sobre o exercício do poder, com o apelo ao emprego da força bruta, real ou ameaçado”.

O PGR explicou, ainda, que “a cooperação entre si dos denunciados para esse objetivo derradeiro — sob a coordenação, inspiração e determinação do ex-presidente da República denunciado — torna nítida a organização criminosa no seu significado penal”. E agregou: “Ainda que nem todos os denunciados tenham atuado ativamente em todos os acontecimentos relevantes na sequência de quadros em que se desdobraram as ações contra as instituições democráticas, todos colaboraram na parte em que lhes coube, em cada etapa do processo de golpe, para que o conjunto dos acontecimentos criminosos ganhasse realidade”.

Gonet defendeu estar “provada a cadeia de fatos direcionados a consumar a ruptura democrática, haja visto que, em vários momentos, houve a conclamação pública, pelo então presidente da República, de que não se utilizasse as urnas eletrônicas previstas na legislação, sob a ameaça de as eleições não virem a acontecer, bem como de resistência ativa contra os seus resultados”.

Além disso, acrescentou, “maquinaram-se insistentes campanhas de informações falsas sobre o processo eleitoral e sobre magistrados que o dirigiam. Pretendia-se que os ânimos populares se voltassem contra o judiciário e contra os resultados de derrota nas urnas, pressentidos e afinal, confirmados”.

Adesão de comandantes

Como ponto concreto da trama, Gonet levantou a participação direta de militares. “O presidente da República, comandante maior das Forças Armadas, reuniu os mais altos militares das Três Forças, para dar-lhes a conhecer os seus planos. Logo mais, o ministro de Estado da Defesa convocou os comandantes militares para revelar-lhes a estratégia a ser adotada. Repare-se bem que a reunião não se deu para que os comandantes tivessem ciência do grave ato, a fim de que a ele resistissem energicamente. Não. Eles foram convocados para aderirem ao movimento golpista estruturado”, salientou.

Gonet continuou dizendo: “não é preciso um esforço intelectual extraordinário para reconhecer que, quando o presidente da República e depois o ministro da Defesa convocam a cúpula militar para apresentar documentos de formalização de golpe de Estado, o processo criminoso já está em curso. Não se está, neste caso, num ambiente relativamente inofensivo de conversas entre quem não dispõe de meios para operar. Quando o presidente da República e o ministro da Defesa se reúnem com os comandantes militares sob a sua direção política e hierárquica para concitá-los a executar as fases finais do golpe, o golpe, ele mesmo, já está em curso”.

O PGR continuou seu relato detalhando as ações planejadas, entre as quais os atos voltados à incitação popular e à destruição da credibilidade do sistema eleitoral, os acampamentos e atentados anteriores à posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que culminaram no 8 de janeiro, e o plano para matar Moraes, Lula e Alckmin.

Após a fala de Gonet, a sessão foi interrompida e retomada à tarde, para a manifestação das defesas.