Nesta 2ª parte do artigo, procura-se abordar o papel estratégico da atuação dos comunistas na resistência e derrubada da ditadura militar no Brasil, na luta por democracia e soberania nacional, principalmente na organização do povo e na formulação de um modelo de saúde que superasse as mazelas sanitárias no Brasil.

Na conjuntura internacional da guerra fria, do mundo dividido pelo bloco capitalista e pelo bloco socialista, o avanço do conceito, princípios e diretrizes de saúde, capitaneados pelos comunistas, principalmente os da URSS, que já espraiavam seu modelo e ações de serviços de saúde, influenciaram diversos países e sistemas, à exemplo da revolução e do governo revolucionário cubano.

A URSS, como já retratado anteriormente, recebeu desde a década de 1930, diversas delegações, pesquisadores e profissionais da saúde de diversas partes do mundo para vivenciar de perto o vanguardismo e o modelo de saúde soviético proposto pelos comunistas.

A pesquisadora da Fiocruz Gabriela Alves Miranda ao escrever a sua tese de doutorado, pesquisou inúmeros relatos de médicos e pesquisadores brasileiros que visitaram a URSS entre as décadas de 1930 e 1950, revelando o seu estudo em entrevista ao portal Brasil de Fato, em matéria intitulada “Quando a saúde brasileira encontrou a soviética”, publicada em 11 de fevereiro de 2025.

Neste esteio, a pesquisadora sinaliza alguns dos brasileiros que realizaram viagens à URSS, como Maurício de Medeiros, que exerceu a função de ministro da Saúde do presidente Juscelino Kubitschek, e o médico psiquiatra Osório César, do Hospital do Juqueri, pioneiro da arteterapia no Brasil e companheiro da pintora modernista Tarsila do Amaral. A autora destaca que alguns dos visitantes tinham relações com o Partido Comunista do Brasil e outros não. 

A matéria aponta um ineditismo encontrado na saúde da URSS: “um sistema de saúde gratuito, com técnicas modernas e trabalhadores bem pagos” (BdF, 2025). A autora ao pesquisar e estudar as publicações dos pesquisadores brasileiros que vivenciaram de perto à experiência dos comunistas russos, aponta às confluências que percebeu nos textos.

Gabriela indica que à “admiração pela saúde soviética partia da intenção de desmistificar e trazer ao Brasil concepções lá implementadas”, avança sinalizando que essas são conhecidas e incorporadas no Brasil, como “uma saúde pública e gratuita com integração com educação e pesquisa, formação continuada dos profissionais, estímulo ao desenvolvimento de novas técnicas e outras inovações” e conclui que passados quarenta anos “alguns desses pontos se tornaram pilares da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) (BdF, 2025).

No Brasil sob o regime militar a partir do golpe de 1964, os comunistas organizam o povo para resistir frente à usurpação do Estado brasileiro por interesses internacionais, pelo retorno da democracia, pelo fim da violência estatal, por liberdade e direitos sociais e civis.

A Guerrilha do Araguaia, através dos comunistas combatentes, constituíram relações com o povo através de diversas frentes, uma delas foi a frente da saúde, materializada nas relações estabelecidas pelo camarada médico João Carlos Hass Sobrinho, o Doutor Juca, ou Doutor Araguaia, como ficou conhecido pelos serviços de saúde prestados à população quem compunha o teatro de operações da guerrilha.

O Movimento Sanitarista Brasileiro iniciado na década de 1970, como resistência e luta contra à ditadura militar, teve a participação direta dos comunistas na sua constituição e desenvolvimento. Um movimento vanguardista que articulou à sociedade na defesa da democracia e do direito à saúde.

Movimento que envolveu e articulou diversos setores da sociedade dando contribuições na formulação da temática da saúde, ações de mobilizações e de enfrentamento ao estado autoritário, resistiu e contribuiu para o processo de abertura e de redemocratização do Brasil.

Em matéria do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE), intitulada “Como a saúde ajudou a derrubar a ditadura”, publicada em 4 de abril de 2024, é reproduzida entrevista com lideranças da frente da saúde à época, José Gomes Temporão, sanitarista e ex-ministro da Saúde, a médica baiana Julieta Palmeira, atual assessora da Finep e ex-presidente da Bahiafarma, e a médica cearense Teresinha Braga, ex-presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará.

Teresinha Braga destaca o papel relação, mobilização e de organização da população entorno da frente da saúde, a partir de uma articulação da extensão universitária e lideranças comunitárias através de atendimentos nos bairros onde “passamos a atender em locais cedidos pelas associações de moradores, e até criamos uma Associação Interbairros, que contribuiu para a retomada da organização do movimento comunitário” (CEE Fiocruz, 2024).

Julieta Palmeira caracteriza a visão que o estado brasileiro tinha em relação à saúde, apondo que “naquela época, a saúde era vista como o não-adoecimento. Tudo era a partir da chave do adoecimento, diferente do que se vê hoje, em que se pensa também nas medidas de prevenção, nas questões sociais” (CEE Fiocruz, 2024).

José Temporão registra que naquele momento histórico havia uma convergência “na luta pela construção de um novo sistema de Saúde no Brasil, que superasse as desigualdades, iniquidades, centralizações e autoritarismos que vigiam antes do SUS”, completa que “na esteira da Declaração de Alma-Ata fomos desenvolvendo propostas para o que viria a ser a atenção primária” (CEE Fiocruz, 2024).

Teresinha Braga reforça o papel estratégico dos exemplos comunistas nos princípios adotados na concepção dos seus sistemas de saúde, indicando que “o exemplo de Cuba também teve muita importância ao organizar seu sistema a partir da compreensão de que a Saúde precisa ser para todos” (CEE Fiocruz, 2024).

Deste momento histórico apontado pelas camaradas Teresinha Braga e Julieta Palmeira e pelo amigo do PCdoB, José Temporão, o movimento sanitarista brasileiro, molda os princípios e diretrizes de um novo modelo de sistema de saúde que atendesse aos interesses do povo brasileiro, que dialogasse com a resistência à ditadura e que contribuísse para o descortinar uma nova aurora.

Registra-se que o conjunto das formulações apresentadas pelo movimento sanitarista brasileiro, tiveram como parte das suas fontes, teorias, práticas, modelos de sistemas e de serviços de saúde, concebidos e/ou defendidos pelos comunistas, destacando os princípios e diretrizes, que moldava o entendimento da saúde como direito, o seu caráter universal, o papel garantidor do estado, a gratuidade e a relação entre a saúde, a democracia e a soberania nacional.

Constata-se que durante o regime militar indicadores de saúde despencaram impactando diretamente na qualidade de vida das pessoas e no aumento de óbitos evitáveis.

O CEE Fiocruz, apresenta um texto intitulado “Antes do SUS: Como se (des)organizava a saúde no Brasil sob a ditadura”, publicado em 10 de abril de 2018, que aponta, entre outros dados, um aumento de 50% de óbitos em nascidos vivos, comparando os números de 1961 e 1973, na cidade de São Paulo.

Em 1973, “90 crianças morreram a cada grupo de mil nascidas vivas”, enquanto que em 1961, “ocorreram 60 óbitos por mil nascidos vivos, o índice mais baixo do século”. No Brasil, acrescenta que “72% dos que morriam no país tinham menos de 50 anos e, destes, 46,5% eram crianças menores de quatro” (CEE Fiocruz, 2018).

Revela ainda que “doença de Chagas, peste bubônica, tuberculose, hanseníase, febre amarela, malária, filariose, leishmaniose”, indicando que “cada enfermidade exibia indicadores piores que as anteriores” (CEE Fiocruz, 2018).

A realidade dos indicadores de saúde do Brasil e somados à necessidade de constituir um sistema que desse fim à essa realidade,  além da repressão estatal, da luta por democracia e soberania nacional, foram elementos para a formulação e organização dos comunistas neste momento histórico.

*Referências na 3ª parte.