Má-fé impede “especialista” de vincular ascensão do Vietnã ao socialismo
A China já passou por isso. Agora, é a vez do Vietnã. Quando a grande mídia exaltava o elevado crescimento econômico e o acelerado desenvolvimento da China a partir da década de 1990, a regra era omitir – tanto quanto fosse possível – o fato de que o país era governado pelo Partido Comunista.
Em vez do reconhecimento da experiência chinesa como um novo e bem-sucedido tipo de socialismo, havia uma obsessão em rotular aquele modelo como uma “economia socialista de mercado”, “capitalismo de Estado” ou, pior, a rendição ao capitalismo. Alguém alertou: “Não é bem uma análise. No fundo, eles (os jornais) torcem – ou rezam – para que não seja socialismo. É quase uma questão de fé – ou, talvez, de má-fé”.
O artigo que Ronaldo Lemos publicou no domingo (28), em sua coluna na Folha de S.Paulo, repete essa fórmula desonesta. O texto prometia comparar o status de Brasil e Vietnã “na corrida pelo desenvolvimento”. Lemos – que se apresenta como advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro – polui o texto de dados oficiais, mas desconexos ou descontextualizados. Percebe-se que, ao fim e ao cabo, seu objetivo maior é desqualificar o Brasil a qualquer custo.
Em contraponto ao País, o autor indica o Vietnã. Em nenhum momento a escolha é justificada por algum parâmetro objetivo. O Brasil tem mais que o dobro da população do Vietnã (213 milhões x 100 milhões) e um território 25 vezes maior. O confronto parece desigual. Mesmo assim, a coluna crava, já em seu título: “Brasil toma surra do Vietnã em tecnologia, educação e agro”.
Planejamento estatal
Os três eixos comparativos são detalhados sem a necessária contextualização. Lemos começa apresentando dados mais recentes do Pisa, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, realizado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O Pisa mostra um ranking internacional com base no desempenho de seus estudantes de 15 anos.
“Os 10% piores estudantes do Vietnã têm desempenho similar aos 10% melhores alunos brasileiros, incluindo as escolas privadas. Mesmo alunos de famílias mais pobres no Vietnã têm desempenho muito acima da média nacional do Brasil”, escreve Ronaldo Lemos.
De fato, a posição brasileira é vexatória. O último ranking disponível, o Pisa 2022, mostra o desempenho dos estudantes em 81 países – e o Brasil ocupa apenas a 65ª posição em Matemática, a 61ª em Ciências e a 52ª em Leitura. Estamos atrás não apenas do Vietnã – mas de dezenas de países em desenvolvimento.
Ao falar de Educação, porém, o “especialista” Ronaldo Lemos não explica por que o Vietnã foi tão longe. A razão está diretamente ligada ao regime socialista, capaz de transformar a Educação em prioridade nacional, com uma planejamentos de longo prazo, sob direção estatal, sem risco de interrupções ou reviravoltas decorrentes de mudança de governante. Não por acaso, quando os estudantes do Vietnã estrearam no Pisa, em 2015, seus resultados em Matemática e Ciências foram melhores do que os de alunos dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Há duas décadas, mais de 20% do orçamento vietnamita é destinado à educação (no Brasil, a taxa é de 3%). O Vietnã combateu o analfabetismo, buscou universalizar o acesso à educação e expandiu exponencialmente a formação profissional. Quase 100% dos professores no ensino superior têm mestrado ou doutorado. O processo de industrialização do país requereu, ainda, investimentos em mão de obra qualificada, já que, a cada ano, 1 milhão de trabalhadores trocam a agricultura pelos setores de indústria e serviços.
Graças ao planejamento do Partido Comunista do Vietnã, foi possível promover saltos educacionais e econômicos que se articulavam e se potencializavam diretamente. Uma matéria da BBC de 2015, ano da surpreendente estreia do Vietnã no Pisa, já apontava “três fatores importantes” para o êxito desse projeto: “um governo comprometido, um plano de estudos bem pensado e um forte investimento nos professores”.
(Em favor de Ronaldo Lemos e da Folha de S.Paulo, pode-se alegar que o repórter da BBC também se “esqueceu” de dizer que essa reforma estrutural na educação do Vietnã ficou sob responsabilidade dos comunistas… “A objetividade não existe, mas a honestidade, sim”, ensinava o jornalista francês Hubert Beuve-Méry, fundador do Le Monde).
Lemos acerta mais a mão quando fala do desnível entre Brasil e Vietnã na Ciência&Tecnologia. “O Vietnã está dando um baile. O país está construindo um caminho tecnológico próprio, sem copiar ninguém”, diz o colunista. Aqui, sim, seu detalhamento é inconteste: “Em 2024, o Vietnã exportou US$ 124 bilhões (R$ 662,6 bilhões) em produtos tecnológicos. O Brasil exportou US$ 8 bilhões (R$ 42,7 bilhões), a maior parte da Embraer. Tecnologia corresponde a 40% das exportações do Vietnã e menos de 3% no Brasil”.
Lemos lembra que o Vietnã está avançado – e soberano – em projetos de áreas estratégicas, como inteligência artificial. A recente legislação aprovada para o setor “é leitura obrigatória para qualquer pessoa no Brasil interessada nesses temas”. O autor vai além: “Se quisermos desenvolvimento de verdade, precisamos olhar mais para países como o Vietnã e menos para a Europa”.
Lendo o texto de Ronaldo Lemos, pode parecer que os deuses premiaram o Vietnã ou que estamos diante de um novo “destino manifesto”. É mais simples: a exemplo da China, o Vietnã também forjou uma experiência própria, moderna e audaciosa de socialismo, dirigida por seu quase centenário Partido Comunista.
Ao chegar no confronto de indicadores no agronegócio, o autor vai além da má-fé e torce números. Para ser direto: Ronaldo Lemos mente com a única preocupação de esculhambar o Brasil.
Segundo Lemos, “o Vietnã cresceu usando conhecimento e estratégia. Está apostando em certificações para agregar mais valor aos seus produtos. No café, onde atua há bem menos tempo, tornou-se o segundo maior exportador, controlando 20% do mercado global (o Brasil tem 37%)”. O colunista acrescenta que os vietnamitas dominaram, ainda, “o mercado de castanha de caju, planta do nordeste brasileiro”.
O rodeio é de mau gosto por algumas razões. Como o próprio texto deixa claro, o Brasil, comparado com o Vietnã, tem quase o dobro de participação no mercado global de café – 37% a 20% – e não há uma tendência de alteração significativa nesses percentuais. Além disso, produtores de café brasileiro também estão em busca de mais valor agregado nas exportações.
O exemplo da castanha de caju é um caso de meia verdade. Embora a fruta seja brasileira, já faz décadas que o País deixou de ser seu maior produtor mundial – hoje o Brasil é apenas o décimo. Mas tampouco é verdade que o Vietnã “dominou o mercado”. Os maiores produtores são Costa do Marfim (1 milhão de toneladas ao ano), Índia (738 mil toneladas) e Camboja (600 mil toneladas). O Vietnã, com uma produção de 400 mil toneladas ao ano, aparece em quarto.
Ainda que o país asiático se destaque na produção dessas commodities – e de outras mais –, é rigorosamente falso sustentar, sob qualquer aspecto, que o Brasil está atrás do Vietnã no conjunto do agro. Somos líderes mundiais na exportação de açúcar, café, carne bovina, carne de frango, milho soja e suco de laranja. Estudo da BTG Pactual mostrou que o Brasil, com pouco mais de 200 milhões de habitantes, produz hoje alimentos suficientes para necessidades calóricas de 900 milhões de pessoas.
Artigos e reportagens que comparem o Brasil ao Vietnã – ou a qualquer outra nação – são bem-vindos, desde que, como disse Beuve-Méry, sejam tão factuais quanto honestos. O crescimento sustentável, longevo e inspirador do Vietnã está diretamente ligado a uma opção política alternativa ao capitalismo. A China já se livrou desse estigma midiático. O Vietnã, com o tempo, haverá de se livrar também.