E as contribuições do Feminismo?
Nos debates partidários, a metodologia do encontro baseada na análise de conjuntura, no estudo da política internacional, nacional e da vida partidária funciona bem na formação e no diálogo com militantes, convidadas e convidados. Nesse processo, o debate sobre raça, gênero e corpo aparece com força nas falas dos comunistas em todos os encontros, após o debate central, mostrando a necessidade de ampliar sua presença nos textos e formulações do partido.
A ausência da palavra feminismo no documento do projeto de resolução do 16º Congresso do Partido Comunista do Brasil – PCdoB chama a atenção. A palavra feminista aparece apenas três vezes: primeiro, para explicar a força das comunistas nos movimentos feministas; depois, como possibilidade de crescimento estratégico do partido, tratando o movimento como opção; e por fim, como referência à contribuição da corrente teórica marxista ao pensamento feminista. O fato é que o partido chega aos seus 103 anos. Não seria, então, tempo de considerar o feminismo e o enfrentamento ao patriarcado como parte central da luta pelo socialismo?
A esquerda, por essência, reconhece o valor da ciência e da cultura na elaboração de políticas públicas, enquanto a extrema direita se apoia no campo moral para justificar ideias e violências. Nesse cenário, o PCdoB avalia que as lutas de raça e das mulheres se apresentam com vigor, em comparação ao refluxo de outros movimentos sociais, ao mesmo tempo em que realiza forte campanha pelo revigoramento do partido. Por isso, algumas formulações teóricas precisam entrar em cena para aquecer o debate e disputar a agenda de gênero.
Este texto, ainda em caráter preliminar, traz um debate recente que também serve de alerta e convite a uma movimentação que ameaça justamente aquelas pessoas que, em sua maioria, sustentam a esquerda no Brasil e no mundo. A cultura política atual se apoia na reprodução de violências e na naturalização do machismo, sustentados por organismos institucionais e sociais. Se o feminismo, em sua concepção ampla, não se inscrever e não ocupar lugar estratégico nos partidos políticos, no país, nos estados e nos municípios, a construção de uma oposição ampla e efetiva aos regimes neoliberais e capitalistas ficará comprometida.
Hoje, há um movimento que se espalha na esfera política, já presente no debate acadêmico e emergente até mesmo na esquerda, que nomeia pessoas sem consentimento como “identitárias”. Os maiores ataques se dirigem ao movimento e aos estudos interseccionais de raça e queer. Para aprofundar, vale conhecer a compilação de textos e críticas organizada por Leandro Colling, professor da UFBA. Algumas expressões usadas contra o chamado “identitarismo” são: “liberalismo identitário”, “olimpíada da vitimização”, “narcísico e individualista” e até comparações ao nazismo. Esses discursos, antes difundidos por conservadores nos EUA, passaram a circular também em setores que se dizem progressistas. Neles há uma falsa explicação que coloca a vitória da extrema direita e de Trump na conta de um alvo equivocado, o fantasma do identitarismo. Nas eleições de 2018, após o movimento “Elenão” algo semelhante ocorreu no Brasil, e esses discursos já estão sendo produzidos e publicados aqui.
É preciso lembrar que todo mundo ocupa um lugar no mundo. Quando se acusa alguém de defender pautas identitárias, parte-se do pressuposto de que nenhuma identidade foi antes reivindicada. Mas os espaços, as políticas e os partidos são formados por sujeitos que ocupam lugares, elaboram políticas e disputam poder. Quem são, em sua maioria, esses sujeitos? Uma identidade invisível porque se apresenta como neutra, naturalizada como legítima nos espaços de poder: homens, brancos, não jovens, ricos, supostamente heterossexuais e conformes à norma de gênero hegemônica. Não à toa, não existe movimento de homens para lutar contra desigualdade, pois essa desigualdade não existe para eles.
O movimento “#Elenão” deflagrou novas questões e se consolidou como um marco histórico das mulheres no Brasil, não apenas pela possibilidade de unidade entre feministas e não feministas, mas também pela oposição ao patriarcado e aos seus dispositivos: misoginia, sexismo e machismo. Não por acaso, tratava-se da eleição pós-golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, marcada por uma violência intensificada pelas fake news, hoje entendidas como desinformação. Uma das principais vítimas dessa violência foi Manuela D’Ávila, candidata a vice-presidente da República, naquele momento, pelo Partido Comunista do Brasil.
Os ataques a Manuela geraram constrangimento coletivo na esquerda e entre aqueles que tomavam decisões políticas. Ela foi afastada dos atos públicos durante a campanha e continuou sendo alvo de agressões. As pautas morais também foram usadas com transfobia, como na circulação de uma foto manipulada em que sua camiseta aparecia com a inscrição “Jesus é Travesti”. O mesmo Brasil que atacou Dilma com misoginia repetiu a violência contra Manuela. Os aliados, naquele momento, não estavam preparados para reconhecê-la como vítima dessa violência, nem compreenderam a centralidade das questões de gênero no golpe e no uso das redes, hoje até fonte de monetização. É natural que as mulheres não consigam permanecer nos espaços políticos?
Parte da esquerda flerta com a neutralidade, a financeirização, a negociação de pertencimento para se manter no poder e a escolha de inimigos equivocados. Mas o PCdoB, historicamente ao lado do povo, ocupa posição central na formulação de políticas que enfrentam dilemas cotidianos sem reproduzir opressões simbólicas e concretas. Pacificar contradições entre a luta de classes e as lutas interseccionais, muitas vezes travadas por quem engessa o debate, é um grande desafio. Quais pontos nos unem? Como as intersecções podem se tornar nossa força? Como dizem Débora Diniz e Ivone Gebara em Esperança Feminista: “O feminismo não deve ambicionar unidade ou coerência, mas permanente inquietação”. Essa inquietação deve orientar a prática revolucionária.
A união do povo brasileiro e o progresso social não serão realidade sem forças capazes de abalar estruturas hegemônicas. Promover acesso às mulheres e à diversidade significa tocar em privilégios, alterar a ordem e abandonar práticas anacrônicas. Muitas pessoas não estão preparadas para enfrentar a luta política e são lançadas à militância pela sobrevivência. Angústias individuais podem levar a comportamentos essencialistas, mas discursos individuais não representam o coletivo que formula, de forma incansável, ferramentas de luta contra vícios e poderes estabelecidos.
Uma pesquisa de Alice Evans, pesquisadora que estuda relações de gênero pelo mundo, indica que em vários contextos as mulheres tendem a se posicionar mais à esquerda do que os homens. Esses estudos sugerem que, em certas eleições, principalmente as polarizadas, o voto pode se diferenciar mais por gênero do que por idade. Como nosso partido se posicionará em relação à violência cultural contra as mulheres nos espaços públicos? E frente à ofensiva da extrema direita contra as identidades plurais do país? Haveria uma cópia nebulosa da esquerda nos espaços de poder, que não se confronta, mas se desfigura? Formular perguntas para a autocrítica é o objetivo desta escrita, e as respostas só podem surgir no coletivo partidário.
Que a luta siga firme na sustentação da frente ampla em defesa do presidente Lula, trazendo de forma aberta e inegociável a agenda política que inscreve o feminismo como projeto estratégico para o desenvolvimento do Brasil.
*Arquiteta e Urbanista. Atua no movimento cultural e LGBTQIAPN+. Do Organismo de Base do Institucional SETRE/SUDES.