A questão nacional popular como luta aglutinadora
O nacionalismo popular foi nos anos 1960 a principal bandeira articuladora da maioria das organizações de esquerda, e veio a ser suplantado durante o período da democratização cuja bandeira central de mobilização no combate ao regime militar foi a centralidade que teve a questão democrática. Com o passar do tempo, nas últimas décadas, as lutas chamadas identitárias começaram a ocupar o lugar central por parte de diversas organizações do campo da esquerda brasileira.
Contudo, recentemente a questão nacional começou de novo a ocupar um espaço de relevância diante as ameaças do Governo Trump ao Brasil, e a extrema direita brasileira mostrou a sua posição entreguista ao apoiar essas pressões externas e, com isso, mostrou que as seu discurso nacionalista não passava nada mais de um simulacro.
Certamente o nacionalismo defendido pelo PCdoB em seu programa corresponde ao nacionalismo popular que se diferencia do nacionalismo burguês cujos traços representam elementos xenófobos e fascistas. O nacionalismo popular do campo da esquerda se marca pelos seus aspectos anti-imperialistas e de condensação das diversas formas de lutas que isoladamente não apresentam um projeto político de poder. Isso não significa que as reivindicações de lutas de opressão não tenham importância significativa, mas correm o risco devido a seu foco reducionista, como também seria se ficarmos redutíveis à bandeira classista. No entanto, é importante frisar que as lutas feministas e antirracistas fazem parte do legado histórico das bandeiras comunistas desde o século passado, vide as conquistas dos direitos das mulheres em vários processos revolucionários, a exemplo da revolução soviética e chinesa, assim como a questão racial também esteve presente nas lutas de libertação nacional anticoloniais nos chamados países do Terceiro Mundo da África, Ásia e América Latina, como também nos Panteras Negras dos EUA. E, mais recentemente, a questão LGBTI+ foi incorporada pela chamada esquerda “tradicional” que reivindica a herança e o legado dos movimentos revolucionários que se constituíram no século XX.
O nacionalismo popular torna-se assim um princípio articulador dessas diversas reivindicações e as condensa como um programa político transformador em oposição ao projeto neoliberal e ao neofascismo, correntes políticas essas que vieram a se articular nos últimos anos em oposição aos governos progressistas que conquistaram espaços significativos no cenário político no continente americano neste século XXI. Por sinal deve-se frisar que muitos desses governos emergiram sob a bandeira nacional popular a exemplo dos governos Chavez e Rafael Corrêa.
Com efeito, o nacionalismo popular não é um fim em si, mas um meio para a constituição e ampliação de um programa socialista para a formação social brasileira.
Como já observava Guerreiro Ramos em sua obra “O problema nacional brasileiro” “o nacionalismo é a ideologia dos povos que, na presente época, lutam por liberta-se da condição colonial” (p.25). Essa consciência nacional e capacidade de soberania não seria um atributo inato, ou um dom da natureza, ou tampouco uma dádiva, mas sim “a efetiva soberania é atributo histórico adquirido pelas coletividades mediante luta, audácia e iniciativa. O nacionalismo é a reivindicação essência que fazem hoje os povos que não se encontram ainda em pleno gozo da soberania” (p.25). Guerreiro ainda estabelecia uma linha de demarcação entre os países imperialistas e colonialistas que proclamavam um suposto “universalismo” diante a ascensão histórica dos povos periféricos que reivindicavam sua soberania plena. Como ele afirma em seguida “o conteúdo de tal universalismo é conservador, enquanto o conteúdo do nacionalismo é revolucionário. São contraditórios o ponto de vista dos povos cêntricos e o dos povos periféricos. Mas nem o universalismo dos primeiros é autentico, nem o nacionalismo dos últimos é contrário ao verdadeiro universalismo” (p.25).
Tanto o nacionalismo popular e a luta de classes perderam espaço, ou protagonismo, pela esquerda pós moderna que centrou nas lutas anti opressivas como objetivo principal de reivindicações, e tratando-as de formas insuladas sem articulação com a luta de classes, e tampouco com o nacionalismo popular anti-imperialista. Para esse segmento da esquerda tanto a lutas de caráter nacional popular como a luta de classes faziam parte do passado. Afinal de contas o imperialismo teria sido suplantado pela noção de “Império” como as classes sociais já inexistiriam e, no seu lugar, estaria prevalecendo as lutas dos grupos sociais, mas desligados das lutas de classe. Ademais, o nacionalismo era classificado como uma perspectiva conservadora e restrita a extrema direita, o que de fato tem acontecido no continente europeu.
Como observa Ernesto Laclau em seu livro “Política e ideologia na teoria marxista” a ideologia nacionalista é uma forma desprovida de conteúdo. Segundo Laclau, o nacionalismo considerado em si mesmo está desprovido de uma conotação classista. O nacionalismo pode ser uma plataforma de um projeto de expansão burguesa num espaço geográfico, a exemplo dos EUA ou da Alemanha. Mas também pode ser a base de um programa anti-imperialista e de libertação nacional a exemplo da Revolução Chinesa de 1949, ou das lutas anticoloniais africanas. O caráter de classe de um discurso ideológico se revela em seu princípio articulatório específico (p.166). Segundo Laclau
“Será que o nacionalismo refere-se a conteúdos tão diversos que não seja possível identificar um elemento comum de sentido em todos eles? Ou talvez ocorra que certos núcleos comuns de sentido estejam conotativamente ligados a campos ideológico-articulatórios distintos? Se aceitarmos a primeira solução, teríamos que concluir que a luta ideológica enquanto tal é impossível, uma vez que as classes só podem competir a nível ideológico caso exista um marco comum de sentido compartilhado por todas as forças em luta. É justamente este ‘background’ de significados compartilhados que permite aos discursos antagônicos estabelecerem suas diferenças. Os discursos políticos das diversas classes, por exemplo, consistem em esforços articulatórios antagônicos, em que cada classe se apresenta como a autêntica representante do ‘povo’, ‘do interesse nacional’, etc. Se, por conseguinte, aceitarmos a segunda solução – que consideramos correta – será preciso concluir que as classes existem aos níveis ideológico e político, sob a forma da articulação, e não da redução (p.167)”
Portanto, o nacionalismo popular que tem como centro a luta dos e das trabalhadoras e articula-se outras bandeiras reivindicativas como as de gênero e raça, mas também estabelece um projeto de desenvolvimento nacional a partir das forças produtivas em defesa da soberania nacional e em oposição ao imperialismo que tem como suas principais expressões o capital monolista financeiro e as big techs. Defender na atual conjuntura o desenvolvimento das forças produtivas não pode ser confundido com uma visão economicista. Se as relações sociais de produção ainda são estratégicas para as transformações sociais na construção do socialismo, em tempo presente o desenvolvimento das forças produtivas tornou-se estratégico para a soberania nacional a exemplo da experiência chinesa. Desse modo, na contradição relações sociais de produção e forças produtivas, esta última tornou-se o primado dessa contradição diante as mudanças tecnológicas que mudam a cada instante, pois como já percebiam Marx e Engels no “Manifesto comunista” sobre o modo de produção capitalista “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Isso significa dizer que essa perspectiva nacionalista popular se finca, sobretudo, em bases materiais e não apenas morais como tem sido o tom discursivo da esquerda pós-moderna e identitária. Desse modo, a esquerda comunista ao articular as diversas bandeiras de lutas (que também incluem as lutas dos sem terra e dos sem teto, pela mobilidade urbana, saúde e educação pública de qualidade, redução da jornada de trabalho, aumento salarial) num projeto nacional popular de soberania nacional poderá ampliar ao conquistar novos segmentos (sobretudo as gerações mais novas) para a construção do socialismo na formação social brasileira e sem abdicar do seu histórico passado de lutas.
*Professor titular do Departamento de Ciência Política da UFRJ. Militante da Distrital UFRJ da cidade do Rio de Janeiro.