Semente Popular: solidariedade de classe como estratégia de luta
Em tempos de crise estrutural do capitalismo, agravada por catástrofes ambientais, desmonte de direitos sociais e avanço da extrema-direita, cresce a necessidade de que os comunistas e a esquerda popular construam experiências concretas de enraizamento social. Nesse cenário, a solidariedade de classe se revela não apenas como um gesto humanitário, mas como uma poderosa estratégia de organização popular, disputa de consciência e construção de hegemonia.
É nesse espírito que propomos ao PCdoB, nos marcos do seu 16º Congresso, a criação da Semente Popular – uma organização do movimento social voltada à ação solidária permanente, popular e socialista. Inspirada em experiências similares exitosas – no Brasil e no mundo –, essa entidade deve nascer por iniciativa dos comunistas, mas com capacidade de ser ampla, envolvendo diversos segmentos da sociedade. Sua constituição deve contribuir para ampliar a influência do Partido junto ao povo e aos setores progressistas. Trata-se de levar à prática o lema “estar com o povo, lutar com o povo”, presente no projeto de Resoluções do Congresso. O nome proposto, evidentemente, poderá ser outro, a critério da inteligência coletiva.
A proposta da Semente Popular é articular ações concretas de solidariedade com mobilização social, formação política e elevação do nível de consciência do povo. Uma cozinha solidária, por exemplo, pode funcionar também como um circuito de cultura, um comitê de luta por direitos ou espaço de convivência popular. Um mutirão de saúde pode ser acompanhado de um debate sobre a importância do SUS e da defesa de um sistema público, gratuito e universal. Um cursinho popular pode incluir em sua ementa noções de cidadania e direitos, sempre sob uma perspectiva crítica e avançada. O campo de atuação é vasto: iniciativas que, ao mesmo tempo em que ajudam a amenizar o sofrimento das parcelas mais atingidas pelos males do capitalismo, permitem que o PCdoB conquiste prestígio, respeito e maior inserção popular.
A Semente Popular pode atuar a partir de diversos eixos, que deverão ser melhor desenvolvidos coletivamente. Destacamos, no entanto, quatro linhas iniciais de ação:
(1) Alimentação solidária: criação de cozinhas populares em territórios vulneráveis; organização da distribuição de cestas básicas, preferencialmente oriundas da agricultura familiar e da reforma agrária – a CONTAG e o MST podem ser valiosos parceiros nessa iniciativa;
(2) Mobilização: organização de brigadas solidárias em situações emergenciais (enchentes, ondas de frio, despejos); articulação com movimentos sociais, sindicatos, pastorais e outras organizações na luta por direitos;
(3) Educação: promoção de rodas de conversa, cursinhos populares e circuitos de cultura; produção e divulgação de materiais educativos diversos (jornais, cartilhas, vídeos, podcasts);
(4) Saúde popular: realização de mutirões com profissionais voluntários (enfermeiros, médicos, terapeutas, psicólogos etc.); distribuição de kits de higiene e itens essenciais ao cuidado, como preservativos e absorventes.
Sua estrutura organizativa deve se basear na democracia popular e na ampla participação. Sugerimos um Conselho Popular de Coordenação, composto por quadros destacados pelo Partido, ao lado de representantes das comunidades e de movimentos sociais parceiros. Além disso, poderá ser constituída uma Rede de Apoio Voluntário, envolvendo educadores, profissionais de saúde, artistas, comunicadores populares e demais colaboradores, filiados ou não ao PCdoB. Naturalmente, essa estrutura e sua composição deverão ser mais bem detalhadas em momento oportuno.
A sustentação material dessa empreitada poderá ser garantida por meio de contribuições voluntárias, campanhas de financiamento coletivo, festas de arrecadação, parcerias com organizações similares ou até mesmo com órgãos do Estado – desde que mantida a autonomia política da entidade. A bancada parlamentar comunista certamente poderá colaborar com a indicação de emendas e apoio institucional. O financiamento, sem dúvida, é um dos maiores desafios. Ainda assim, com criatividade, dedicação para encontrar o “caminho das pedras” e vontade política, será possível assegurar os recursos necessários.
Caso a proposta seja acolhida, sugerimos que o Comitê Central formalize uma comissão responsável por detalhar os passos para sua implementação. Essa comissão poderia elaborar o estatuto, o manifesto/programa e um planejamento inicial de ações, além de realizar uma sondagem de quadros que possam contribuir com a construção do projeto. Seria recomendável selecionar alguns estados e cidades como territórios-piloto para iniciar a experiência, avançado aos poucos na replicabilidade em nível nacional. A 1ª Conferência Nacional de Movimentos Populares do PCdoB poderá, quem sabe, ser um excelente palco para lançamento oficial desta iniciativa.
A Semente Popular deve ser, também, uma escola prática do socialismo. Um espaço onde nossos valores – da igualdade à solidariedade, da soberania alimentar à justiça social – deixem de ser apenas discurso e ganhem corpo na vida concreta de milhares de pessoas. Assim, ela contribui para reconstruir o tecido social esgarçado pelo neoliberalismo, enfrentando o individualismo, o racismo, o patriarcado e o fascismo cotidiano por meio do trabalho de base transformador e cotidiano.
Ou seja, ao contrário da caridade burguesa e do oportunismo eleitoreiro que apenas exploram a pobreza, a proposta parte da premissa de que é o povo que ajuda o povo – e que as ações que buscam mitigar a tragédia social imposta pelo capitalismo devem vir acompanhadas da denúncia ativa desse modo de produção, reforçando a luta por sua superação. Ao distribuir alimentos produzidos pela agricultura familiar e pela reforma agrária, ao erguer cozinhas comunitárias em bairros periféricos, ao oferecer atendimento de saúde popular e educação crítica, estamos semeando um novo horizonte civilizacional – centrado na vida e não no lucro.
A criação dessa organização exige mais do que boa vontade: requer método, acúmulo político e compromisso estratégico. É fundamental que o Partido compreenda essa iniciativa como parte de uma tática de enraizamento e construção de vínculos orgânicos com o povo. Isso significa incentivar nossos militantes a construí-la nos bairros, ocupações, favelas e territórios urbanos e rurais; estabelecer diálogo com sindicatos, coletivos, universidades e pastorais; e buscar formas sustentáveis de financiamento que assegurem sua autonomia e continuidade.
Essa proposta não substitui outras frentes de luta fundamentais, mas as complementa de forma concreta. Mais ainda: pode representar um caminho promissor de renovação partidária, de formação de novos quadros e de inserção viva nas massas – tarefas imprescindíveis para o avanço da luta pelo socialismo no Brasil.
Caio Botelho é economista e membro do Comitê Central; Secretário de Movimentos Sociais do Comitê Estadual da Bahia.