Raça, Classe e Revolução no Brasil: Desafios Teóricos e Caminhos de Superação no Projeto do PCdoB
Introdução
O 16º Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) representa um esforço vigoroso de atualização estratégica diante dos desafios contemporâneos: a crise estrutural do capitalismo, a reconfiguração do imperialismo e o avanço de projetos autoritários de extrema-direita. No entanto, ao abordar a formação social brasileira, atravessada profundamente por determinações raciais, a Proposta de tese apresenta pontos que ainda carecem de aprofundamento. A questão racial aparece, sim, mencionada, mas com um tratamento secundário, muitas vezes subordinado a uma leitura classista tradicional. Esta limitação impede que se avance na construção de um projeto verdadeiramente enraizado nas condições concretas do povo brasileiro. Este artigo busca contribuir com o debate, trazendo uma análise crítica, dialética e comprometida com o fortalecimento do Partido e de uma sociedade crítica que aponte o social como solução para as contradições do capitalismo, propondo caminhos de superação a partir da realidade concreta e das tradições teóricas de autores negros marxistas.
Raça e Classe na Formação Social Brasileira: Um Déficit de Centralidade Analítica
Embora a proposta de tese reconheça o racismo como elemento agravante da exploração, falta-lhe reconhecer o racismo como estrutura fundante do capitalismo brasileiro. A escravidão colonial, como aponta Clóvis Moura, não foi um resquício feudal ou um “desvio” do capitalismo, mas sua própria base de constituição. A racialização da força de trabalho esteve no cerne da acumulação primitiva e permanece como lógica organizadora das relações sociais no Brasil.
Angela Davis nos lembra que “onde o racismo é estrutural, a classe é racializada”. A formação da classe trabalhadora brasileira não pode ser compreendida sem considerar seu caráter predominantemente negro, indígena e periférico. A superação da dicotomia entre “luta de classes” e “luta racial” é uma tarefa teórica e política urgente.
A proposta aqui não é substituir uma pela outra, mas avançar para uma síntese concreta: compreender que, no Brasil, a luta de classes é, em grande medida, luta racial. Incorporar esse entendimento na linha política do partido é condição para um projeto popular efetivamente emancipador.
Superexploração e a Invisibilidade da População Negra no Mundo do Trabalho
A proposta de tese denuncia a precarização das condições de trabalho e o avanço da informalidade, mas ainda carece de uma análise que identifique como essas condições afetam de maneira desproporcional a população negra. Não basta mencionar desigualdades: é preciso nomeá-las, qualificá-las e combatê-las com um programa de ação.
Como nos mostra Ruy Mauro Marini, a superexploração é um traço estrutural do capitalismo dependente. No Brasil, ela é racializada: os dados do IBGE, da PNAD e do IPEA mostram que os setores mais explorados, precarizados e desempregados da força de trabalho são compostos majoritariamente por pessoas negras.
Ao não explicitar isso, corre-se o risco de manter uma análise formalmente correta, mas socialmente cega. Uma leitura marxista da totalidade concreta exige que o partido compreenda que a cor da classe importa, e muito.
Reconhecer a Produção Intelectual Negra como Parte da Tradição Revolucionária
Outro ponto que demanda reflexão é a ausência, na tese, da tradição marxista negra. O acúmulo teórico produzido por Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Frantz Fanon, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Kabengele Munanga, entre tantos outros, não pode ser visto como um “adendo identitário”, mas como contribuição essencial à compreensão da totalidade social brasileira.
Fanon denuncia que o colonialismo é sustentado pela racialização da dominação, o que guarda relação direta com a nossa realidade periférica. Clóvis Moura desvela as rebeliões negras como formas históricas da luta de classes racializadas. Lélia Gonzalez formula o “amefricanismo” como síntese crítica entre cultura, território e resistência negra popular.
Incorporar essas vozes à formação política, à formulação programática e à elaboração teórica do partido não é um gesto simbólico: é uma exigência revolucionária.
A Violência de Estado e a Juventude Negra: Uma Luta pela Vida
A proposta de tese toca na repressão do Estado nas periferias, mas evita nominar de forma mais direta a realidade de extermínio enfrentada pela juventude negra. O termo “genocídio”, apesar de polêmico, traduz com precisão a política sistemática de morte, como nos alertam autores como Silvio Almeida e Abdias Nascimento.
Não se trata de um mero debate semântico. Nomear a realidade é também tomar posição. A política de segurança no Brasil, moldada historicamente por um modelo racista de controle social, atua como instrumento da dominação de classe e de raça.
Uma proposta revolucionária precisa contemplar a desmilitarização da polícia, o fim da guerra às drogas, a valorização de políticas públicas nos territórios populares e o reconhecimento do direito à vida como eixo central da ação política.
A Urgência de um Programa Político para a Emancipação da Classe Trabalhadora Negra
A proposta de tese acerta ao reconhecer a importância da luta antirracista no projeto de desenvolvimento nacional. No entanto, falta-lhe um programa mais ousado, concreto e radicalmente redistributivo. A luta antirracista não pode ser apenas discursiva: precisa ser traduzida em propostas práticas, estruturantes e transformadoras.
Isso inclui: reforma urbana e agrária com recorte racial, cotas raciais e sociais nos meios de comunicação e no sistema de justiça, investimentos prioritários em saúde, educação e cultura nas periferias, combate à desigualdade racial na política e nas instituições do Estado, além de formação antirracista nas escolas públicas.
Como afirmam Jessé Souza e Domenico Losurdo, o Brasil sofre de uma modernização conservadora que perpetua privilégios e coopta camadas populares. Combater essa lógica exige que o partido se alinhe com a centralidade da questão negra na disputa por hegemonia.
Conclusão: Avançar com o Povo Negro Rumo a um Brasil Socialista e Antirracista
A revolução brasileira será negra, popular e socialista ou não será. O desafio que se impõe ao PCdoB e à esquerda em geral é o de romper com qualquer resquício de eurocentrismo teórico ou pragmatismo político que invisibilize a negritude enquanto sujeito histórico.
As críticas aqui formuladas não visam fragilizar o partido, mas fortalecê-lo em sua vocação transformadora. O Brasil exige de nós uma teoria e uma prática à altura de sua complexidade. A luta antirracista deve ser parte orgânica da estratégia socialista, não um anexo à parte.
É tempo de unir bandeiras. Que o vermelho da luta proletária, o preto da pele resistente e o verde da esperança se tornem uma só estandarte. Que o socialismo brasileiro seja radicalmente popular, profundamente negro, e absolutamente libertador.