Guia Lilás: avanços e desafios pragmáticos
No tocante ao desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a proteção de mulheres vítimas de assédio moral, sexual e discriminação no âmbito do serviço público federal, o “Guia Lilás – orientações para prevenção e enfrentamento ao assédio moral e sexual e à discriminação no Governo Federal” é, sem dúvida nenhuma, uma louvável contribuição em prol de ações que proporcionem ambientes profissionais saudáveis, respeitosos e seguros ética, física e psicologicamente para todos e, especialmente, para as mulheres. A edição atualizada do “Guia Lilás” foi publicada em 05 de dezembro de 2024 pela Controladoria Geral da União (CGU) e apresenta orientações importantes sobre como prevenir e enfrentar tanto o assédio moral, quanto o sexual e a discriminação nas instituições federais. De acordo com o Ministro da CGU, Vinicius de Carvalho, “… mais do que um guia, ele é um chamado à ação, à responsabilidade coletiva pela criação de ambientes seguros e respeitosos”.
Com uma linguagem muito didática, o “Guia Lilás” tipifica as violências que uma mulher, por exemplo, pode viver em seu ambiente de trabalho e, neste momento, me chama atenção um tipo de violência silenciosa que devasta, como tantas outras, a vida da vítima podendo levá-la ao desenvolvimento de transtornos mentais e emocionais que, por vezes, perduram meses ou anos como: depressão, síndrome do pânico, ansiedade generalizada, estresse pós-traumático, Burnout, entre tantos outros transtornos; refiro-me ao assédio moral, ao assédio moral de gênero e ao assédio moral organizacional. Obviamente, todas as formas de violência contra mulher são devastadoras e cada mulher luta contra tais violências de uma maneira singular, no entanto, neste artigo minha intenção é tentar lançar luz ao assédio moral que, em muitas instituições, é silenciado e quase nunca debatido e/ou fiscalizado.
De acordo com a resolução do CNJ n°351, de 28 de outubro de 2020, citada no Guia Lilás, o “assédio moral é a violação da dignidade ou integridade psíquica ou física de outra pessoa por meio de conduta abusiva, independentemente de intencionalidade, por meio da degradação das relações socioprofissionais e do ambiente de trabalho, podendo se caracterizar pela exigência de cumprimento de tarefas desnecessárias ou exorbitantes, discriminação, humilhação, constrangimento, isolamento, exclusão social, difamação ou situações humilhantes e constrangedoras suscetíveis de causar sofrimento, dano físico ou psicológico”. Ao se perceber, então, vítima de assédio moral, a orientação é buscar os órgãos responsáveis pelo acolhimento (ouvidoria, comissão de ética, por exemplo) ou gestores/as que devem, cuidadosa e respeitosamente, ouvir a vítima e orientá-la a seguir com a denúncia. Entretanto, a partir de tais orientações, surgem algumas inquietações:
- e se a instituição não possuir, por exemplo, uma política de prevenção e enfrentamento de assédio moral, como garantir que a vítima receberá acolhimento humanizado?
- e quando a mulher, vítima de assédio moral organizacional, tenta resolver institucionalmente o problema e, simplesmente, não é acolhida por nenhum setor e/ou inclusive por gestores/as, quem irá realizar tal acolhimento?
- e, por último, qual órgão irá fiscalizar a instituição que incentiva, promove e/ou permite a prática assédio moral organizacional ou assédio moral de gênero na instituição?
Tais indagações levam-me à conclusão de que é urgente o desenvolvimento de políticas públicas que promovam ações efetivas de prevenção, enfrentamento e fiscalização, pois quando uma mulher, vítima de assédio moral organizacional, por exemplo, decide dar um basta no assédio, a luta não é apenas contra o assediador, mas, por vezes, contra um sistema que pune a vítima e protege o agressor psicológico. Nesses casos, o que fazer? a quem pedir ajuda?
Segundo a resolução CNJ n°351, de 28 de outubro de 2020, assédio moral organizacional é o “processo contínuo de condutas abusivas ou hostis, amparado por estratégias organizacionais e/ou métodos gerenciais que visem obter engajamento intensivo ou excluir aqueles que a instituição não deseja manter em seus quadros, por meio do desrespeito aos seus direitos fundamentais”. Para além dos direitos fundamentais, há uma violação explícita à dignidade mental e emocional da vítima, pois o assédio passa a ter permissão da própria instituição. Há casos em que mulheres, vítimas desse tipo de violência, ficam sem rede de apoio e escolhem se aposentar por não suportarem a dor de ter que conviver forçosamente com as agressões porque a própria instituição não lhe dá o acolhimento devido e temem por sua integridade física e psicológica. É preciso viver tal dor para compreender o mal que esse tipo de assédio provoca na vida profissional e pessoal de uma mulher. Por isso, ratifico: é urgente o desenvolvimento de políticas públicas que previnam e efetivamente protejam tais mulheres nos serviços públicos.
Nesse contexto, é necessário, por exemplo, ter um olhar especial para as universidades federais, servidores e, de forma singular, servidoras. Em março de 2025, o Tribunal de Contas da União – TCU, constatou que “60% das universidades federais não têm políticas de combate ao assédio, ou seja, 41 das 69 universidades federais não possuem nenhum mecanismo de combate ao assédio, tampouco políticas de prevenção”. Ao analisar esses dados, volto para as indagações anteriores e concluo que é necessário um trabalho interministerial para desenvolver políticas que acompanhem a implementação de ações nas universidades federais que não possuem política de enfrentamento ao assédio moral, sexual e discriminação, bem como garantir que, caso seja identificado o abuso emocional, as vítimas sejam devidamente acolhidas, ouvidas e respeitadas em sua dor, em seus transtornos emocionais e/ou mentais.
O Ministro do TCU, Aroldo Cedraz, acredita ser “crítico o combate a esse problema no âmbito das universidades federais pelo potencial impacto sobre aspectos pessoais e profissionais das vítimas. O assédio, nesse contexto, foi identificado como uma das principais causas da desistência de estudantes. Em outras palavras, o que poderia representar uma oportunidade de crescimento e independência para a mulher, ao proporcionar meios para o avanço educacional e social, acaba por se tornar mais uma barreira, prejudicando seu pleno desenvolvimento e segurança”. Em sua fala, o Ministro refere-se a estudantes, mas há casos de servidoras federais (em uma rápida pesquisa na internet é possível encontrar exemplos) que sofrem/sofreram assédio moral ou assédio moral organizacional e, por isso, também é importante olhar para essas mulheres.
Diante, portanto, de tudo que foi exposto, quero pontuar algumas ações que poderiam corroborar para o desenvolvimento de políticas que protejam servidores, em especial, mulheres federais do assédio moral, bem como do assédio moral organizacional, a ver:
- Desenvolvimento e promulgação da lei do assédio moral com o fim de proteger vítimas desse tipo de violência, bem como indicação de locais de acolhimento caso as vítimas não sejam acolhidas pelo próprio ambiente profissional;
- Acompanhamento e fiscalização de políticas de prevenção e combate ao assédio moral a partir do MEC;
- Apoio do Ministério das Mulheres na instituição de políticas públicas que protejam mulheres vítimas de assédio moral;
- Constituição de uma comissão de combate ao assédio moral pelo Ministério das Mulheres com o fim de implementar e acompanhar ações em prol de um ambiente saudável nas universidades federais.
Por fim, é preciso registrar que o “Guia Lilás” é uma política pública extremamente importante na consolidação dos conceitos e dos debates acerca do tema proposto, no entanto, os desafios pragmáticos estão postos e, portanto, é relevante promover a efetivação do que está proposto neste Guia a partir de ações interministeriais, assim como da sociedade como um todo, lembrando que o abuso psicológico de hoje pode ser o feminicídio de amanhã.
Flávia Conceição Ferreira da Silva é militante do PCdoB em Paulista (PE)