Enfrentar a dominância financeira – o Banco Central necessário
parte 3
E qual é o papel do Banco Central do Brasil, atual e necessário?
Desde a sua criação em 1965, como sucessor da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), vinculada ao Banco do Brasil, incumbiu-se ao Banco Central do Brasil, autarquia pública federal, a manutenção do poder de compra da moeda e a preservação da poupança popular de que instituições financeiras que autoriza funcionar são depositárias. A autoridade monetária foi alocada sob o mando do Ministério da Fazenda ou seu correlato.
Uma regulação e supervisão bancária das mais conservadoras e eficientes do planeta, assim reconhecida mundialmente – enquanto a alavancagem tolerada pelo acordo de Basileia era de onze vezes o capital próprio (nos EUA da bolha financeira e da desregulamentação chegou a 72 vezes), o Brasil não permitia que fosse maior que 8,5, ponderada pelo risco – deu conta da segunda missão.
Mas o monetarismo, agravado pelo neoliberalismo derivado do “consenso” de Washington, pregava a contenção do consumo para adequar a moeda disponível às mercadorias postas em circulação, estimulando que as sobras de dinheiro fossem mantidas em contas remuneradas pelos seus titulares. Ao longo das décadas, esse mecanismo tornou-se um ótimo negócio financeiro, pois o equivalente monetário da riqueza produzida crescia sem que o poupador precisasse trabalhar, extraindo mais-valia do trabalho do conjunto da nação pois, em última instância, sorvia em forma de juros parte da parcela do PIB recolhida como tributos à União.
Mas não foi só o dinheiro privado que se queria contido em conta corrente, para evitar pressões de consumo aos preços. O Tesouro público também poderia gerar excesso de liquidez por meio do seu uso em gastos sociais – mais funcionários estatais e ajudas emergenciais – e investimentos públicos que movimentassem a economia. Para esse fim não bastavam juros atraentes aos poupadores, mas mostraram-se úteis juros maiores, que enxugassem a liquidez disponível para o governo e seu programa eleito nas urnas.
E assim a dívida pública se tornou um dos melhores negócios privados(e), uma expressiva fonte de acumulação financeira de “risco zero”, segundo a classificação do Banco Central para o país.
O caminho diverso é aumentar o produto – mais mercadorias disponíveis para os agentes econômicos – e, para isso, é preciso redirecionar a liquidez hoje esterilizada nos cofres de cada vez menos famílias, muitas delas residentes no exterior e com passaportes de outras nacionalidades.
A mesma lei que formalizou a autonomia do Banco Central(f) cominou-lhe novas missões com relação ao emprego e as flutuações da economia, sem prejuízo do controle dos preços. Para isso, contou-se com ativa participação dos servidores do BC reunidos em sindicato, o Sinal, que pioneiramente apresentou o projeto do “sistema financeiro cidadão”, que não prosperou então no Senado, mas serviu de base para a inclusão das novas obrigações à Autarquia.
Autarquia que se quer sequestrar à esfera privada, por meio da PEC 65/2023 em tramitação no Senado, facilitando o controle informal dos grandes bancos sobre o sistema financeiro como um todo e o caixa do governo, em benefício próprio ou de seus clientes preferenciais.
À distinção de países como a China e os EUA, em que o banco central é independente, no Brasil ele é autônomo, ou seja, persegue com instrumentos próprios metas que lhe são cominadas externamente, no caso brasileiro pelo Conselho Monetário Nacional.
O organismo já foi integrado não somente por diversos ministérios do governo, mas também por agentes econômicos empresariais e de trabalhadores de diversos ramos de produção, representando o interesse do conjunto da economia no funcionamento da Autoridade Monetária. Hoje é composto pelos Ministros da Fazenda e do Planejamento – duas de três cadeiras do governo – e o presidente do BCB.
O colegiado tem se limitado a estabelecer a clássica meta de inflação, ao albergue do tripé macroeconômico, furtando-se a fixar uma meta de emprego, que não se limita a pessoas, mas ao conjunto dos meios de produção do país, para que de fato a política monetária contribua para o crescimento do país, sem o chamado “imposto inflacionário”.
Tal meta merece, inclusive, ser aplicada às diretrizes orçamentárias do governo como um todo, como propôs o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) em emenda à LDO, conhecida como “emenda do crescimento econômico”(g).
Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2023 e a execução da respectiva Lei deverão ser compatíveis com as demandas do conjunto das políticas econômicas que busquem um crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro de pelo menos 2,5% no ano e a ocupação da mão-de-obra no país igual ou superior a 90% da soma da População Economicamente Ativa (PEA) com a População em Desalento, ao final do correspondente ano.
E o Banco Central, independentemente da autonomia ou de mudança do marco legal, dispõe hoje de ferramentas para perseguir os resultados esperados pelo país: além de reduzir os juros sobre a dívida pública, pode direcionar compulsoriamente a poupança popular a financiamentos do crescimento econômico, em projetos públicos e privados, limitando inclusive a participação de instituições financeiras nos mercados de renda de curto prazo a um percentual do que destinar dos seus ativos ao projeto nacional de desenvolvimento.
Note-se que a Lei brasileira estabelece os institutos do plebiscito e do referendo, de raro uso na história recente do país. Pode o Poder originário, como já sugerimos em artigo(h), decidir o que prefere em termos de política monetária, sem prejuízo de escolhas sobre outros assuntos relevantes para o país e sua vida, ou ao menos dizer se concorda com a política aplicada pelo CMN e pelo BCB.
Somos testemunha da capacidade dos servidores do Banco Central e do seu compromisso com o interesse público nacional, que o que falta é direção distinta da atual para promover – e compelir o sistema financeiro todo a fazê-lo também – o desenvolvimento equilibrado do país e assim servir aos interesses da coletividade no desenvolvimento sustentável, econômico e social do Brasil, distributivo de modo a proporcionar uma vida cada vez melhor aos seus habitantes.
Uma reforma estrutural que, a nosso ver, não está condicionada à mudança de marco legal, mas, principalmente, à decisão política de empreendê-la.
Considerando o exposto, um aposto ao parágrafo 92 do Projeto de Resolução Política do 16º Congresso do PCdoB – “Enfrentar a dominância financeira” – resumiria um caminho de luta pela reforma do sistema financeiro (acréscimo grifado):
92 – Enfrentar a dominância financeira. Por um processo histórico que vem de antes, mas ganhou maior velocidade a partir da década de 1990, mudanças no capitalismo brasileiro resultaram na dominância financeira sobre o conjunto da economia. O chamado tripé macroeconômico (meta de inflação, câmbio flutuante e superávit primário), de 1999, coroa o itinerário crescente da institucionalização dos interesses da oligarquia financeira internacional e nacional. O golpe de 2016 aprofundou esse processo e, ao término do governo da extrema-direita em 2022, efetivou-se uma nova rodada de entronização das políticas neoliberais, a exemplo da aprovação da autonomia do Banco Central, que recebeu então obrigação não cumprida de fomentar o pleno emprego e contribuir com o crescimento da economia brasileira, e da criação da emenda de teto de gastos. Desde então, a política monetária e fiscal tornou-se amplamente direcionada aos interesses e aos ganhos exorbitantes do capital financeiro. Esse nível de domínio sobre o Estado brasileiro é inédito, ainda que seja uma radicalização de tendências já presentes anteriormente.