Colonialismo Digital: A Nova Fronteira do Imperialismo
PARTE II: A REBELIÃO DOS DADOS
A Dialética da Resistência
A situação periférica do Brasil diante do colonialismo digital não é destino inevitável. Como ensina a tradição marxista, toda dominação gera as suas próprias contradições e possibilidades de superação. A mesma infraestrutura que nos subordina pode ser reapropriada para projetos emancipatórios, desde que compreendamos as condições objetivas da luta.
Florestan Fernandes demonstrou como o capitalismo dependente brasileiro reproduz, em cada época histórica, formas específicas de subordinação aos centros imperialistas. Na era digital, essa subordinação se manifesta através da dependência tecnológica, da exportação de dados brutos, da importação de soluções prontas que reproduzem valores alheios.
O movimento de software livre brasileiro, as experiências de tecnologia social, as iniciativas de mídia independente nas periferias urbanas demonstram que é possível construir alternativas tecnológicas orientadas pelos interesses populares. Não se trata de rejeitar a tecnologia, mas de disputar a sua direção social.
A antropofagia digital emerge como filosofia política para os tempos de nuvem: devorar criticamente as influências externas, digeri-las através do filtro das necessidades brasileiras, criar soluções genuinamente nossas. O Pix foi exemplo dessa capacidade: sistema nacional, interoperável, gratuito, que democratizou os pagamentos digitais de forma mais radical que qualquer fintech estrangeira.
O Novo Proletariado Digital
A exploração na era digital assume formas novas, mas preserva a essência descrita por Marx sobre a apropriação privada do trabalho social. Os trabalhadores de aplicativo, os moderadores de conteúdo, os criadores digitais, os desenvolvedores terceirizados compõem um novo proletariado disperso geograficamente, mas unificado pelas mesmas relações de exploração.
Como observou Caio Prado Jr., o Brasil sempre ocupou posição específica na divisão internacional do trabalho: fornecedor de matérias-primas para os centros industrializados. Hoje fornecemos dados comportamentais, atenção, engajamento emocional. A plantation digital substitui a plantação açucareira, mas a lógica colonial permanece intacta.
A uberização do trabalho exemplifica essa nova forma de exploração. Os motoristas, os entregadores, os freelancers digitais são formalmente empreendedores individuais, mas materialmente proletários sem direitos trabalhistas. As plataformas capturam o valor gerado pelo trabalho vivo enquanto transferem todos os riscos e custos para os trabalhadores. É a subsunção real do trabalho ao capital em sua forma mais pura e despudorada.
O Tempo Sequestrado
O colonialismo digital opera também através da captura temporal. Os algoritmos de engajamento foram desenhados para maximizar o tempo de atenção, criando arquiteturas viciantes que sequestram a nossa temporalidade. Scroll infinito, notificações constantes, feeds que jamais terminam transformam o tempo livre em trabalho não remunerado para as plataformas.
Cada minuto brasileiro capturado pelas redes sociais é minuto que não dedicamos à organização política, à educação crítica, ao desenvolvimento de alternativas. A colonização temporal é talvez a mais sutil e devastadora das formas de dominação digital: rouba-se o tempo necessário para pensar alternativas ao próprio sistema que nos rouba o tempo.
Soberania Digital e Projeto Nacional
A construção da soberania digital brasileira exige mais que resistência, demanda um projeto nacional articulado. Lenin demonstrou que não há emancipação possível sem a conquista do poder estatal. Na era digital, isso significa controle público das infraestruturas críticas, regulação democrática dos algoritmos, gestão coletiva dos dados produzidos socialmente.
Os dados produzidos pela sociedade brasileira devem ser tratados como bem comum, não como commodity privada. Transparência algorítmica, portabilidade de dados, controle democrático das plataformas digitais são bandeiras que conectam a luta anticolonial clássica com os desafios contemporâneos da era digital.
A educação tecnopolítica popular torna-se, nesse contexto, instrumento de libertação. Democratizar o acesso ao código, ensinar as bases sociais a compreenderem e questionarem os algoritmos, formar quadros técnicos comprometidos com projetos populares. Só assim teremos um proletariado digital consciente da sua condição e organizado para transformá-la.
Do Sujeito da Predição ao Sujeito da Emancipação
O colonialismo digital não é destino inevitável, mas projeto político que pode ser contestado, desconstruído, superado. A transição do sujeito da predição para o que poderíamos chamar de sujeito da emancipação digital exige revolução epistemológica, política e existencial. Cidadãos que compreendam os códigos que os governam, que disputem os algoritmos que os classificam, que construam alternativas às plataformas que os exploram.
Precisamos defender o direito de programar os nossos próprios futuros, codificar os nossos próprios valores e sonhar os nossos próprios sonhos algorítmicos. A tecnologia pode ser grilhão ou chave da libertação. Como sempre na história, a tecnologia jamais é neutra.
O PCdoB e a Construção da Soberania Digital Popular
O Partido Comunista do Brasil situa a luta contra o colonialismo digital no horizonte estratégico da transição do capitalismo ao socialismo. A conquista da soberania digital não pode ser separada da conquista do poder político estatal pelos trabalhadores da cidade e do campo. Só um Estado de democracia popular terá condições de enfrentar os monopólios tecnológicos globais e construir alternativas genuinamente emancipatórias.
O Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento defendido pelo PCdoB deve incorporar uma dimensão digital soberana. Isso significa investimento público massivo em infraestruturas tecnológicas nacionais, criação de empresas estatais no setor digital estratégico, formação de quadros técnicos comprometidos com o projeto nacional. O partido defende que as riquezas digitais produzidas pelo povo brasileiro sejam tratadas como bem comum, não como commodity privada para enriquecimento de corporações estrangeiras.
A integração solidária da América do Sul ganha, na era digital, novo significado estratégico. A união das nações sul-americanas para enfrentar o colonialismo digital constitui necessidade inadiável. Sistemas de pagamentos regionais como o Pix, redes sociais próprias, plataformas de streaming com conteúdo latino-americano, bancos de dados integrados para pesquisa científica colaborativa. A soberania digital será sul-americana ou não será.
O partido compreende que a educação tecnopolítica popular constitui instrumento fundamental da luta de classes na era digital. Democratizar o acesso ao código, ensinar as bases sociais a compreenderem e questionarem os algoritmos, formar uma nova geração de desenvolvedores comprometidos com os interesses populares. Só assim construiremos um proletariado digital consciente da sua condição e organizado para transformá-la.
A defesa da cultura brasileira, sempre central no programa comunista, exige hoje resistência à homogeneização cultural promovida pelas plataformas globais. Os algoritmos de recomendação privilegiam conteúdos produzidos nos centros hegemônicos, invisibilizando a diversidade cultural brasileira. Fortalecer a produção cultural nacional, garantir espaço para as manifestações regionais, preservar a memória digital do povo brasileiro são tarefas urgentes da luta anti-imperialista.
*Percival Henriques é Especialista em Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, pela Universidade de Pisa – Itália; pesquisador pela Rede de pesquisa: Teoria Critica do Direito e De(s)colonialidade digital; autor de livros como “Pássaros Voam em Bando – A história da Internet do século XVII ao século XXI” e “Direito à Realidade – Por um Constitucionalismo Digital no Brasil”; Presidente da Associação Nacional para Inclusão Digital – ANID; e Membro da Comissão Executiva Estadual do PCdoB na Paraíba.