PARTE I: A PLANTAÇÃO DIGITAL

O Brasil acorda conectado. Adormece vigiado. Entre o primeiro toque na tela do celular e o último scroll nas redes sociais, uma arquitetura invisível captura cada gesto, cada desejo, cada traço da nossa existência coletiva. Quem se beneficia quando os dados de 215 milhões de brasileiros alimentam máquinas californianas? Como chegamos ao ponto onde os algoritmos que organizam a nossa realidade foram programados em outras línguas, para outros mercados, servindo interesses que jamais nos incluíram como protagonistas?

A resposta está na persistência de uma lógica colonial que se reinventa a cada época histórica. Se no século XVI os portugueses extraíam pau-brasil para enriquecer as metrópoles europeias, hoje as corporações globais extraem dados-sujeito para alimentar as economias digitais do Norte Global. A colonialidade muda de vestimenta. Jamais de essência. Permanece a divisão onde uns decidem, outros obedecem. Uns programam, outros são programados.

Os Cabos Submarinos da Dependência

O colonialismo digital opera através de infraestruturas materiais concretas que conectam a nossa periferia aos centros globais de poder. Os cabos submarinos controlados por consórcios estrangeiros transportam os dados brasileiros para os servidores da Amazon, Google, Microsoft. Ali, a nossa diversidade vira estatística. A nossa criatividade vira commodity. Os nossos sonhos viram algoritmos de recomendação para mercados publicitários transnacionais.

Marx demonstrou como o capitalismo se sustenta na separação entre trabalhadores e meios de produção. No século XXI, essa separação ganha contornos digitais sofisticados. Produzimos dados constantemente, seja nas redes sociais, nos aplicativos de transporte ou nas compras online. Mas jamais controlamos os meios de produção algorítmica que transformam essas informações em valor econômico e poder político.

A cada clique brasileiro, uma gota de petróleo digital escorre para os cofres de Silicon Valley. Não acidentalmente, mas por definição de arquitetura. As plataformas foram desenhadas para funcionar como usinas de extração, onde os usuários fornecem trabalho gratuito através de curtidas, comentários, avaliações. Enquanto as corporações estrangeiras capturam integralmente o valor gerado por essa atividade social.

Como observou Engels, em todas as formas de sociedade existe uma determinada produção que determina o posto e a influência de todas as outras. Na era digital, essa produção determinante é a extração e o processamento de dados, controlada integralmente pelos monopólios tecnológicos do Norte Global.

O Capitão do Mato Algorítmico

Para compreender a profundidade do colonialismo digital, precisamos investigar que tipo de sujeito político ele está produzindo. Michel Foucault identificou três formas históricas de poder: o poder soberano que mata ou deixa viver, o poder disciplinar que adestra corpos, e o biopoder que administra populações. O poder algorítmico representa uma quarta forma: o poder preditivo que antecipa e modula comportamentos futuros.

Diferentemente do poder soberano, que opera através de comandos explícitos, o poder algorítmico opera através de modulação ambiental. Não ordena comportamentos. Cria contextos que tornam determinados comportamentos mais prováveis, mais convenientes, mais naturais. É uma forma de dominação que se exerce pela sedução do ambiente construído, não pela coerção direta.

O sujeito político moderno foi constituído através de séculos de lutas por direitos. O sujeito liberal apareceu nas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. O sujeito democrático veio das lutas por sufrágio universal dos séculos XIX e XX. O sujeito social é fruto das lutas por direitos trabalhistas e sociais do século XX.

A hipótese central é que o poder algorítmico está produzindo o que podemos chamar de sujeito da predição. É um sujeito cujos desejos, comportamentos e escolhas futuras são antecipados por sistemas que conhecem os seus padrões melhor que ele próprio. Esse sujeito experimenta liberdade de escolha dentro de um menu de opções pré-selecionadas algoritmicamente. Vive a ilusão da autonomia enquanto navega por trilhos invisíveis que lhe são impostos e ele sequer desconfia.

Esta transformação tem implicações políticas profundas para a teoria democrática. A democracia pressupõe cidadãos capazes de deliberação autônoma sobre questões de interesse público. Mas como deliberar autonomamente quando as nossas percepções são sugeridas por algoritmos? Como formar preferências políticas quando o nosso acesso à informação é mediado por sistemas que otimizam para confirmação de vieses? Como exercer soberania popular quando o próprio conceito de povo é fragmentado em microssegmentos comportamentais comercializáveis?

A Máquina de Discriminar

Os algoritmos de reconhecimento facial que vigiam os brasileiros foram treinados em bases de dados americanas. Aprenderam a enxergar através de categorias raciais e sociais estrangeiras, reproduzindo aqui preconceitos codificados alhures. O resultado são máquinas que discriminam com precisão cirúrgica, operando como sistemas automatizados que identificam, classificam e punem corpos periféricos.

O julgamento algorítmico difere ontologicamente do julgamento humano tradicional. A diferença transcende velocidade ou escala e toca a própria natureza do ato de julgar. O julgamento humano opera através de faculdades que os algoritmos não possuem: compreensão contextual profunda, capacidade empática, reconhecimento de exceções moralmente relevantes. Os algoritmos operam através de correlações estatísticas extraídas de padrões históricos, cristalizando injustiças pretéritas como se fossem leis naturais.

Quando os algoritmos europeus decidem a concessão de crédito para as empresas brasileiras, quando as plataformas americanas determinam que conteúdos os nossos filhos podem acessar, onde está a nossa soberania nacional? A dependência tecnológica é dependência política. Quem controla os códigos controla as decisões que mais importam.

Esta arquitetura de dominação, contudo, precisam ser compreendas para que possamos pensar estratégias de enfrentamento.

O PCdoB e a Luta Anti-imperialista Digital

O Partido Comunista do Brasil compreende que a luta contra o colonialismo digital integra organicamente o combate ao imperialismo contemporâneo. Como organização política de vanguarda da classe operária e do povo trabalhador, apoiada na teoria revolucionária marxista-leninista, o PCdoB identifica nas plataformas digitais os novos aparatos hegemônicos do capital financeiro internacional.

A condição de nação subjugada que o Brasil enfrenta na era digital reproduz, em formas renovadas, a mesma lógica imperial que sempre caracterizou a nossa inserção subordinada no sistema capitalista mundial. Os algoritmos que nos governam foram programados nos centros de poder global para manter a nossa condição periférica, extraindo valor da nossa força de trabalho digital enquanto nos negam o controle sobre os meios de produção algorítmica.

O partido defende que a soberania digital constitui dimensão fundamental da soberania nacional. Sem o controle democrático das infraestruturas digitais, das bases de dados nacionais e dos algoritmos que organizam a vida social, o país permanecerá refém dos interesses estrangeiros. A luta pela soberania digital conecta-se, portanto, à luta mais ampla pela afirmação e fortalecimento da Nação contra as investidas e imposições imperialistas.

A democratização dos meios de comunicação, bandeira histórica do PCdoB, ganha nova urgência na era das plataformas digitais. O direito à comunicação, indispensável à cidadania e à democracia, exige hoje o combate aos monopólios tecnológicos que controlam o fluxo de informações. É preciso estabelecer novos marcos regulatórios que garantam o controle social sobre as plataformas, a transparência algorítmica e a portabilidade dos dados produzidos socialmente.

*Percival Henriques é Especialista em Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, pela Universidade de Pisa – Itália; pesquisador pela Rede de pesquisa: Teoria Critica do Direito e De(s)colonialidade digital; autor de livros como “Pássaros Voam em Bando – A história da Internet do século XVII ao século XXI” e “Direito à Realidade – Por um Constitucionalismo Digital no Brasil”; Presidente da Associação Nacional para Inclusão Digital – ANID; e Membro da Comissão Executiva Estadual do PCdoB na Paraíba.