Ignácio de Mourão Rangel (1914-1994) foi um dos economistas mais brilhante que o Brasil já produziu. Nordestino, revolucionário e intelectual, foi a síntese daquilo que representa o universal no particular do povo brasileiro. O seu ideal comunista não deixou de ser um nacionalista. Compreendia o caráter nacional no século XX como processo emancipatório dos países subdesenvolvidos. 

Isso se reflete em suas obras quando aborda o Brasil. As obras Dualidade Básica da economia brasileira e A inflação brasileira, o autor recorre à dialética como corrente gnosiológica para desenvolver uma episteme voltada à compreensão de nossa nação. A dialética na primeira obra corresponde a compreensão de polos internos e externos – escravismo, feudalismo, capitalismo etc. –, sendo formas de poder político que, em diferentes graus, se alternam ao longo do processo com o esgotamento de um e superação pelo outro. Esse princípio dual é o ponto de partida, para tornar inteligível o caráter da formação histórica brasileira, marcada pela coexistência de relações de produção heterogêneas sob um modo de produção dominante. É o caso da multiplicidade na unidade, como já apontava o pai da dialética, Heráclito de Éfeso, em seu fragmento 10: “Conjunções: o todo e o não todo, o convergente e o divergente, o consoante e o dissonante, e de todas as coisas um, e de um todas as coisas.”

Além disso, Rangel apresenta a dialética como um instrumento para compreender a historicidade das teorias científicas, tanto no campo das ciências da natureza quanto no das ciências sociais. O esgotamento de uma teoria ocorre quando ela deixa de ser capaz de interpretar de forma satisfatória a realidade em que está inserida. Nesse momento, ela é superada por outra que oferece explicações mais precisas e adequadas aos fenômenos observados.

Rangel, aponta a própria Lei de mercados de Jean-Baptiste Say (1767-1832) “A oferta cria a sua própria demanda” como uma realidade histórica. Em modos de produção pré-capitalistas, ela reflete bem a realidade, porém em uma economia monetária, perde a sua utilidade.

Assim, na obra A inflação brasileira percebeu que os economistas de sua época não conseguiam compreender na totalidade a questão da inflação brasileira. Lidavam com teorias previamente formuladas com o intuito de (tentar) descrever a realidade tal como ela é. O lado dos monetaristas (ortodoxos), diziam que o problema da inflação brasileira é a liquidez na economia. O governo emite e, como consequência, os preços sobem. Enquanto o lado, talvez mais progressista, como os estruturalistas (cepalinos), afirmavam que a impressão de dinheiro é apenas o socorro que o governo utiliza como urgência para sanar o problema das contas internas, sendo um problema estrutural. Porém, culpam a inelasticidade da oferta como a causa da inflação.

Para Rangel, tanto os monetaristas como os estruturalistas partiam da ideia de uma insuficiência de oferta em face de uma grande demanda. Estão errados. Suas hipóteses partem de uma perspectiva linear de causa-efeito. Em realidades complexas, como economias monetárias, se tornam insuficientes o raciocínio lógico-formal empregado pelas epistemologias desenvolvidas por ambas escolas econômicas.

Superando as teorias elaboradas pelos ortodoxos e cepalinos, Rangel desenvolveu sua epistemologia por meio da dialética e afirmou que o verdadeiro problema da inflação brasileira não está em uma alta demanda. Mas, ao contrário, o problema deriva de uma crônica insuficiência de demanda. Para esta afirmação, necessitou de um olhar para a história como ferramenta empírica. 

A renda da população brasileira é baixa, há uma má distribuição de renda. Reflexo da capacidade ociosa de grandes empresas, além da baixa qualificação da mão de obra. Outra questão é o capital comercial de alimentos que forma um oligopsônio-oligopólio, mas se comporta como um monopsônio-monopólio de preços. Contudo, o problema não é de uma demanda atuante, mas a falta dela.

Outro ponto importante para conhecer os limites de um desenvolvimento econômico, está em sua obra Elementos de economia de projetamento. Rangel afirma que tanto os fatores como os produtos podem entrar em desutilidade marginal, ocorrendo o inverso daquilo que se espera em um desenvolvimento econômico. Isso ressoa em uma obsolescência da renda nacional.   

Para essa compreensão da realidade, Rangel trouxe o espírito filosófico de Hegel ao debate. Isso porque, ao se abordar uma categoria de maneira a-histórica e abstrata, perde-se o seu conteúdo; assim, sua universalização torna-se incompleta, não se elevando como conceito. A dialética visa superar as contradições da própria realidade percebida de maneira imediata e, por meio da razão, medeia o objeto, elevando-o de mera categoria a conceito.  

Tratando de nação, Rangel, a viu como uma categoria histórica. Analisou-a particularmente, de forma concreta as contradições existentes indo até a essência. Descobriu as leis da dualidade do Brasil e o problema de sua inflação.

Uma característica histórica dessa dualidade é que, por longo tempo, os latifundiários brasileiros se voltaram para o mercado internacional como empresários capitalistas. No entanto, internamente, em suas propriedades, mantinham relações de produção de caráter pré-capitalista, desde o uso prolongado de mão de obra escravizada até a perpetuação de uma força de trabalho com baixa qualificação, reflexo do baixo nível das forças produtivas.

Porém, o Brasil no século XX, o capitalismo adentrou no campo modificando estruturalmente as relações sociais de produção, de uma realidade arcaica, para o modelo de agroindústria. Com o uso intensivo de tecnologia, mecanização e insumos químicos, o camponês tradicional foi, em grande parte, transformado em pequeno ou médio produtor capitalista, ou trabalhador urbano.

Observa-se, todavia, que essa nova etapa já atingiu seu ápice de utilidade marginal e não consegue entregar mais à renda nacional como em tempos anteriores. Visto que os bens de capital utilizados no campo não são nacionais, mas importados, como não são produzidos aqui, não há uma criação de valor que poderia refletir na renda nacional. Logo, é necessária à sua superação, mas nos termos do aufhebung hegeliano. Não implicando uma negação completa, mas a conservação e elevação das forças produtivas em uma nova dinâmica de relações sociais de produção. Para Ignácio Rangel, o atual modo de produção, estruturado na fazenda capitalista, será um dia superado, não por um retorno às formas pré-capitalistas, como o campesinato tradicional, mas pela fazenda coletiva ou pela fazenda do Estado.

Para isso, é essencial tensionar mais a contradição atual até o seu esgotamento (superação). Nesse sentido, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) no século XXI entendeu com profundidade a dinâmica em que o Brasil se encontra e se consolidou como um dos sujeitos políticos por: atuar no mercado financeiro como forma de receber investimentos, propõe a apropriação de latifúndios improdutivos, a organização coletiva, o desenvolvimento da agroindústria e da indústria nacional e o fortalecimento de um mercado nacional que sirva ao povo e não somente à firma (ao capital), superando o capital comercial de alimentos oligopsônio-oligopólio.

Quando a teoria dialética de Ignácio Rangel ainda é utilizada para explicar a realidade brasileira, ele ainda está vivo. Não em corpo, mas em espírito intelectual que clareia uma possibilidade de futuro mais justa à nação brasileira.