Erasmo Carlos, Wanderléia e Roberto Carlos / Créditos: Divulgação

Há 60 anos, às 16 horas de 22 de agosto de 1965, a TV Record exibia pela primeira vez o programa Jovem Guarda. No palco do Teatro Record, em São Paulo, estavam Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, com calças justas, guitarras elétricas e um vocabulário inédito na televisão brasileira. Ali nascia oficialmente um movimento cultural que marcaria gerações e se tornaria muito maior do que uma atração de auditório. O movimento durou pouco — de 1965 a 1968 —, mas seu impacto foi duradouro.

O título do programa não foi escolhido ao acaso. Sua inspiração veio de uma frase do revolucionário Vladimir Lênin (1870–1924), líder da Revolução Russa: “O futuro pertence à jovem guarda, porque a velha está ultrapassada”.

Ironia histórica: um movimento inspirado em revolução tornou-se alvo de críticos de esquerda por, supostamente, não fazer revolução alguma. Mas, em plena ditadura militar, a Jovem Guarda fazia algo radical: trazia a alegria para um país em luto. Tinham namoros de portão, carros vermelhos na contramão e uma vontade furiosa de viver. A Jovem Guarda podia ser alienação política em tempos de festivais e canções de protesto — mas também era sobrevivência.

No Brasil dos anos 1960, a expressão Jovem Guarda ganhou outro sentido. Representava a rebeldia possível dentro da ordem brutal da ditadura, oferecendo à juventude um espaço de expressão – ainda que distante do engajamento político que mobilizava parte da música popular ou os jovens que preferiram pagar com a vida ao partir para a luta armada.

Enquanto a MPB cantava em códigos para escapar da censura, a Jovem Guarda cantava alto o direito de ser jovem, apesar dos militares. O programa O Fino da Bossa, conduzido por Elis Regina, conflitou com Jovem Guarda, pois condenava a guitarra na Música Popular Brasileira. Mas o sucesso do Iê-Iê-Iê foi inevitável e fez Elis se render ao instrumento elétrico.

Num país onde estudantes eram torturados, jornalistas desapareciam e artistas eram exilados, dançar era um ato político, sorrir era rebeldia e, se os militares não viam ameaça no iê-iê-iê, tanto melhor: era a guerrilha dos suburbanos, como disse um cronista, “com o ginasial incompleto e empunhando uma bandeira onde estava escrito: ‘Vem quente que eu estou fervendo’.”

A festa de arromba da juventude

O programa dominical reuniu centenas de artistas ao longo de seus três anos no ar. Nomes como Ronnie Von, Martinha, Jerry Adriani, Vanusa, Leno & Lílian, Sérgio Reis e Os Incríveis ajudaram a consolidar a chamada Turma do iê-iê-iê.

A Jovem Guarda não se limitava ao palco: virou moda, lançou gírias, influenciou penteados e roupas. Termos como “papo firme”, “broto”, “carango” e “prafrentex” entraram no vocabulário cotidiano. A publicidade explorou ao máximo o fenômeno: bonecas, discos, roupas e até canetas foram vendidas com o selo do movimento.

A Jovem Guarda não surgiu do nada. Antes dela, houve o Clube do Rock, de Carlos Imperial, no Rio; as versões de Celly e Tony Campello; e o Clube do Clã, cópia do argentino Clube del Clan, criado pela CBS para fidelizar fãs em colégios.

Quando Roberto Carlos estourou com É Proibido Fumar (1964), a CBS lançou um compacto duplo com O Calhambeque — e virou moda. As agências de publicidade, então, enxergaram o ouro:

  • O Rei fez sua primeira propaganda com as canetas Sheaffer, e quem comprava levava um disquinho transparente com sua foto;
  • A Estrela lançou bonecos de Erasmo e Wanderléa;
  • Erasmo Carlos abriu um restaurante chamado Tremendão;
  • E a música Um Leão Está Solto nas Ruas virou hit infantil.

Ao descrever esse cenário, Marcelo Fróes, em Jovem Guarda em Ritmo de Aventura, mostra que o movimento foi mais do que versões de músicas estrangeiras. Foi uma revolução técnica e cultural. E, acima de tudo, inventou a cultura pop no Brasil.

Se de um lado tantos jovens eram torturados ao lutarem pela volta da democracia, em contrapartida um novo Brasil consumista, simulando o American Way of Life, transformava a juventude num lucrativo mercado consumidor.

Se Roberto Carlos virou o “Rei” e Erasmo o “Tremendão”, Wanderléa foi símbolo de libertação feminina. Suas minissaias escandalizaram conservadores e encantaram jovens, transformando-a em referência de estilo e comportamento. As fãs da plateia, que gritavam, desmaiavam e até rasgavam roupas de seus ídolos, revelavam uma nova relação de paixão com a cultura pop – fenômeno comparável ao da Beatlemania.

Entre a alienação e a revolução pop

Críticos da época, acusavam a Jovem Guarda de superficialidade e alienação, por falar de namoros, carros e bailes em vez de enfrentar a ditadura. Ainda hoje se questiona se aqueles artistas não poderiam ter feito mais.

O movimento, por outro lado, teve um papel de ruptura em seu âmbito estético: introduziu guitarras e bandas de rock nos estúdios brasileiros, quebrando a hegemonia das grandes orquestras. Essa modernização dos arranjos abriria caminho para a Tropicália, que absorveu a energia pop e levou a ousadia ainda mais longe.

“Pega, mata e come”, cantava Maria Bethânia no Carcará. Mas, segundo relatos, foi ela mesma quem pediu ao irmão Caetano: “Mude o lado do disco, ouça o iê-iê-iê”. E assim, dos “leõezinhos, tigresas e vacas profanas” do movimento, surgiu a Tropicália — que, ironicamente, nasceu das guitarras elétricas que a Jovem Guarda trouxe para o centro da cena musical.

Crítica à alienação: o julgamento da Jovem Guarda pelo prisma da MPB

Desde o início, a Jovem Guarda foi massacrada pela crítica. Elis Regina, ao retornar de uma turnê internacional, disparou: “Esse tal de iê-iê-iê é uma droga: deforma a mente da juventude. As letras não contêm qualquer mensagem.”

O Caetano Veloso da Tropicália frequentemente era vaiado por questionar se toda música precisa carregar o peso da revolução. Será que rir, dançar e se apaixonar não são formas de resistência? Perguntas que ele se faz até hoje.

Do preconceito ao legado

Com o fim do programa em 1968, muitos artistas da Jovem Guarda precisaram se reinventar. Roberto Carlos seguiu carreira solo e consolidou-se como o maior cantor romântico e popular do país. Outros migraram para diferentes estilos, como Sérgio Reis, que se tornou referência na música sertaneja. Muitos desses, flertam hoje com o conservadorismo, com o proselitismo religioso e extremismo político, nem que seja pelo silêncio ensurdecedor sobre suas posições políticas.

Hoje, passados 60 anos, a Jovem Guarda é reconhecida não apenas como moda passageira, mas como um marco da indústria cultural brasileira – um momento em que música, televisão, publicidade e juventude se encontraram para inaugurar a cultura pop.

A Jovem Guarda existiu e encantou, apesar de não servir ao que se queria para o Brasil naquele momento. Não foi apenas um movimento musical, mas a alegria como arma, a juventude como revolução — e, sim, o futuro, afinal, pertenceu à jovem guarda. A outra face da juventude que foi à luta.

Aos 60 anos, com os eventos, exposições e shows para relembrar aquele período fugaz, jovens dos anos de chumbo mostram que aquele movimento foi, sobretudo, uma revolução afetiva e cultural.

(por Cezar Xavier)