A importância atual da categoria de nacionalidade pensada pelo filósofo Álvaro Vieira Pinto
O filósofo Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) foi um polímata. Formou-se em Medicina, posteriormente em Matemática e Física, e obteve o título de doutor em História da Filosofia ao defender a tese intitulada Ensaio sobre a Dinâmica na Cosmologia de Platão. Seu nome ganhou visibilidade na década de 1950, quando integrou o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ao lado de outros intelectuais, dedicando-se à compreensão complexa da realidade brasileira.
Nesta empreitada, Vieira Pinto escreveu Ideologia e Desenvolvimento Nacional (1956), Consciência e Realidade Nacional (volume 1 em 1960 e volume 2 em 1961); Ciência e Existência (1969), O Conceito de Tecnologia (os dois volumes em 2005, obra póstuma), A Sociologia dos Países Subdesenvolvidos (2008, obra póstuma), entre outras obras.
O estudo filosófico sobre a nacionalidade é desenvolvido com maior envergadura em Consciência e Realidade Nacional. Para isso, recorreu a sete categorias da lógica dialética – como em Hegel as descreveu na sua obra Fenomenologia do Espírito (1807) – para dizer do caminho da consciência até o absoluto. São elas: objetividade, historicidade, racionalidade, totalidade, atividade, liberdade e nacionalidade.
Em relação a essa última categoria, Vieira Pinto busca desmistificar os preconceitos e esclarecer a consciência nacional sobre o subdesenvolvimento do Brasil. Percebe que ela não surge apenas com a constituição da nação moderna, mas tem origens embrionárias mesmo em formas sociais mais simples, como famílias, clãs ou pequenas aldeias. Nesse meio, já havia um contorno envolvente que mediava a relação entre o homem e a natureza.
Esse meio material condiciona a consciência, permitindo ao indivíduo inserir-se no mundo e transformá-lo. A consciência nacional, mesmo em seu estágio inicial é uma consciência de mundo, e não isolada e individual, pois, para que o pensamento adquira sentido e validade, deve ser socialmente reconhecido. Logo, a consciência nacional é coletiva, existindo só na mediação com os outros.
Com o advento do capitalismo, eis que se foi necessário superar de fato a organização apenas provincial, mas solidificar nações. Alterando estruturas de poder, assim, filósofos pensavam sobre esse novo mundo. A necessidade de um Estado soberano moldado por ideais nacionalistas ganhava corpo e aparecia nas revoluções liberais.
Nesse caso, com a concretização desse novo Estado, o capitalismo se instaura e sua contradição principal passa a ser entre capitalistas e trabalhadores, ou seja, uma contradição de classes. Contudo, Vieira Pinto, ao desenvolver a categoria nacionalidade, afirmou que essas contradições existem e conflitam, mas em um país subdesenvolvido são obscurecidas por uma contradição maior: a do imperialismo contra o nacionalismo. Mesmo que uma nação subdesenvolvida tente emergir como potência industrial e se tornar um dos países de destaque na corrida tecnológica, certamente sofrerá algum tipo de bloqueio imposto pelo imperialismo. Como ocorreu e ainda ocorre com o Brasil.
Logo, só após superar a contradição entre imperialismo e nacionalismo no Sul Global é que as contradições internas, entre capitalistas e trabalhadores, ficarão visíveis. Observa-se que, nos séculos XX e XXI, países do Sul Global que tentaram conquistar sua soberania econômico-política, seja pela via do socialismo ou mesmo do capitalismo, sofreram embargos, sanções e até golpes de Estado financiados e apoiados pelo imperialismo, seja pelo uso da força militar, jurídica ou pelo meio intelectual, como o soft power.
Em 1985, foi publicado um artigo chamado France: Defection of the Leftist Intellectuals, elaborado pela própria Central Intelligence Agency (CIA), como uma produção intelectual voltada a conter o avanço de uma consciência crítica desenvolvida pelo marxismo. Favorecendo estudos de filósofos franceses dos Nouveaux Philosophes (Novos Filósofos), cuja crítica ao capital era (e é) significativamente mais branda.
Essa estratégia reflete como formas de produção do saber são condicionadas pelo modo de produção dominante e podem atuar no esvaziamento da crítica dirigida a categorias fundamentais para a emancipação humana. No entanto, para que uma categoria seja elevada à condição de conceito, ela não pode se manifestar por meio de uma consciência ingênua, mas por uma consciência crítica. Ingênua no sentido de atribuir o real aquilo que se percebe de maneira imediata e intuitiva, sem a mediação da razão. Já a consciência crítica, ao contrário, exige essa mediação para a compreensão da totalidade. Nesse movimento dialético, o homem se insere no mundo e o transforma por meio do trabalho.
Em Anotações sobre Hegel, Vieira Pinto comenta a dialética socrático-platônica, e destaca que, por meio da ironia socrática fazia “o adversário a admitir o contrário do que pensava fazendo ultrapassar seu próprio pensamento”. Em contraposição, cita Kant – cuja filosofia influenciou fortemente tanto o positivismo quanto a fenomenologia – e sua doutrina das antinomias da razão, na qual a contradição não é superada, mas permanece como um impasse insolúvel. Nesse contexto, a razão é incapaz de conhecer a realidade em si e, consequentemente, de transformá-la.
É interessante notar que, para Vieira Pinto, o real não é apenas acessível ao homem, mas também pode ser transformado por ele, por meio da consciência crítica, uma autoconsciência histórica que atua como instrumento de transformação. Nesse ponto, observa-se um distanciamento lógico de Vieira Pinto em relação aos filósofos não dialéticos, especialmente os existencialistas, que tendem a negligenciar a inserção do sujeito na totalidade histórica. Essa inserção, por sua vez, se dá mediante uma categoria central no pensamento do filósofo brasileiro: a categoria trabalho. Assim, torna-se possível o avanço da consciência-de-si (consciência parcial) para a consciência-para-si (autoconsciência, em busca da liberdade efetiva).
Para o filósofo brasileiro, a existência do homem se dá na produção concreta da realidade: ao modificar os fenômenos e ao se inserir neles. Já filosofias que se baseiam em separações superficiais, como a cisão entre coisa-em-si e fenômeno, trabalham apenas com categorias abstratas. Em Vieira Pinto isso não ocorre, a categoria de forma determinada, concreta, além de ter o viés teórico para a compreensão mediada, é transformada pelo homem. Aqui há o conteúdo marxista de sua filosofia, teoria e práxis.
Vieira Pinto vai além e denuncia a visão limitada da consciência ingênua sobre a nação. Para ela, a nação é algo já realizado, dado e imutável. Isso reflete uma crença enraizada nas sociedades (neo)colonizadas, transmitida pelos próprios (neo)colonizadores. Já para a consciência crítica, ao contrário, a nação é um vir-a-ser, um processo histórico que se realiza, não precedendo a ação humana, mas decorre dela.
A categoria de nacionalidade, sendo um vir-a-ser, por ser um projeto e por ser histórica, pode se esgotar. Isso supostamente ocorrerá quando sua razão de ser, como a luta contra o imperialismo, deixar de existir. Nesse caso, sua superação abrirá espaço para a emergência de uma nova categoria universal: a de humanidade.
Entretanto, até que esse momento chegue, é preciso que nós, do Sul Global, desenvolvamos exaustivamente a categoria de nacionalidade.