Em jornais estrangeiros, Lula defende multilateralismo

Jornais estrangeiros publicaram, na quinta-feira (10), artigo do presidente Lula em defesa do multilateralismo. A mídia internacional tem acompanhado de perto o injustificável anúncio de aumento de tarifas para produtos brasileiros pelos Estados Unidos, o que coloca o país no centro das atenções.
Neste mesmo cenário, o presidente Lula tem sido uma das vozes mais importantes nos últimos anos em defesa da refundação de organismos internacionais, de forma que reflitam a realidade atual.
Dessa maneira, os jornais Le Monde (francês), El País (espanhol), The Guardian (britânico), Der Spiegel (alemão), Corriere della Sera (italiano), Yomiuri Shimbun (japonês), China Daily (chinês), Clarín (argentino) e La Jornada (mexicano), destacaram as observações do presidente brasileiro, que tem sido um crítico contumaz do descrédito em que caíram as instituições internacionais — sem efetividade na oferta de respostas para um mundo envolto em crises.
Segundo Lula, “a solução para a crise do multilateralismo não é abandoná-lo, mas refundá-lo sob bases mais justas e inclusivas”. Ele lista os conflitos mundiais e ressalta que o “genocídio em Gaza é a negação dos valores mais basilares da humanidade”.
Esta “lei do mais forte”, como é tratada, se reflete ainda em “tarifaços” que, de acordo com o presidente, “desorganizam cadeias de valor e lançam a economia mundial em uma espiral de preços altos e estagnação”. Nesse ponto é feita uma crítica direta às ações de Trump, embora ele não seja citado nominalmente.
Também é sublinhado que “o colapso financeiro de 2008 evidenciou o fracasso da globalização neoliberal”, mas que nem isso foi capaz de tirar o “receituário da austeridade” da ordem de muitos países e organizações globais.
Na visão do líder brasileiro, a opção constante de “socorrer super-ricos e grandes corporações às custas de cidadãos comuns e pequenos negócios” tem aprofundado as crises ao longo das décadas, o que gera estrangulamento do Estado e descrédito das instituições — terreno fértil para o avanço de narrativas extremistas.
Dessa maneira, pede o retorno dos investimentos em programas de cooperação por parte dos países ricos, deixando claro que isso não é caridade, mas sim a correção de “disparidades que têm raízes em séculos de exploração, ingerência e violência contra povos da América Latina e do Caribe, da África e da Ásia”.
Ao destacar a urgência em deter as mudanças climáticas e reduzir as desigualdades, Lula ressalta o compromisso brasileiro à frente do Brics e da COP30, e o papel desempenhado quando liderou o G20, em 2024.
Por fim, insiste que a saída para as crises passa pelo fortalecimento democrático, mais diálogo e diplomacia: “Apenas assim deixaremos de assistir, passivos, ao aumento da desigualdade, à insensatez das guerras e à própria destruição de nosso planeta”, afirma Lula.
Confira a seguir o artigo completo publicado nos jornais estrangeiros:
Não há alternativa ao multilateralismo
O ano de 2025 deveria ser um momento de celebração dedicado às oito décadas de existência da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas pode entrar para a história como o ano em que a ordem internacional construída a partir de 1945 desmoronou.
As rachaduras já estavam visíveis. Desde a invasão do Iraque e do Afeganistão, a intervenção na Líbia e a guerra na Ucrânia, alguns membros permanentes do Conselho de Segurança banalizaram o uso ilegal da força. A omissão frente ao genocídio em Gaza é a negação dos valores mais basilares da humanidade. A incapacidade de superar diferenças fomenta nova escalada da violência no Oriente Médio, cujo capítulo mais recente inclui o ataque ao Irã.
A lei do mais forte também ameaça o sistema multilateral de comércio. Tarifaços desorganizam cadeias de valor e lançam a economia mundial em uma espiral de preços altos e estagnação. A Organização Mundial do Comércio foi esvaziada e ninguém se recorda da Rodada de Desenvolvimento de Doha.
O colapso financeiro de 2008 evidenciou o fracasso da globalização neoliberal, mas o mundo permaneceu preso ao receituário da austeridade. A opção de socorrer super-ricos e grandes corporações às custas de cidadãos comuns e pequenos negócios aprofundou desigualdades. Nos últimos 10 anos, os US$ 33,9 trilhões acumulados pelo 1% mais rico do planeta é equivalente a 22 vezes os recursos necessários para erradicar a pobreza no mundo.
O estrangulamento da capacidade de ação do Estado redundou no descrédito das instituições. A insatisfação tornou-se terreno fértil para as narrativas extremistas que ameaçam a democracia e fomentam o ódio como projeto político.
Muitos países cortaram programas de cooperação em vez de redobrar esforços para implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Os recursos são insuficientes, seu custo é elevado, o acesso é burocrático e as condições impostas não respeitam as realidades locais.
Não se trata de fazer caridade, mas de corrigir disparidades que têm raízes em séculos de exploração, ingerência e violência contra povos da América Latina e do Caribe, da África e da Ásia. Em um mundo com um PIB combinado de mais de 100 trilhões de dólares, é inaceitável que mais de 700 milhões de pessoas continuem passando fome e vivam sem eletricidade e água.
Os países ricos são os maiores responsáveis históricos pelas emissões de carbono, mas serão os mais pobres quem mais sofrerão com a mudança do clima. O ano de 2024 foi o mais quente da história, mostrando que a realidade está se movendo mais rápido do que o Acordo de Paris. As obrigações vinculantes do Protocolo de Quioto foram substituídas por compromissos voluntários e as promessas de financiamento assumidas na COP15 de Copenhague, que prenunciavam cem bilhões de dólares anuais, nunca se concretizaram. O recente aumento de gastos militares anunciado pela OTAN torna essa possibilidade ainda mais remota.
Os ataques às instituições internacionais ignoram os benefícios concretos trazidos pelo sistema multilateral à vida das pessoas. Se hoje a varíola está erradicada, a camada de ozônio está preservada e os direitos dos trabalhadores ainda estão assegurados em boa parte do mundo, é graças ao esforço dessas instituições.
Em tempos de crescente polarização, expressões como “desglobalização” se tornaram corriqueiras. Mas é impossível “desplanetizar” nossa vida em comum. Não existem muros altos o bastante para manter ilhas de paz e prosperidade cercadas de violência e miséria.
O mundo de hoje é muito diferente do de 1945. Novas forças emergiram e novos desafios se impuseram. Se as organizações internacionais parecem ineficazes, é porque sua estrutura não reflete a atualidade. Ações unilaterais e excludentes são agravadas pelo vácuo de liderança coletiva. A solução para a crise do multilateralismo não é abandoná-lo, mas refundá-lo sob bases mais justas e inclusivas.
É este entendimento que o Brasil – cuja vocação sempre será a de contribuir pela colaboração entre as nações – mostrou na presidência no G20, no ano passado, e segue mostrando nas presidências do BRICS e da COP30, neste ano: o de que é possível encontrar convergências mesmo em cenários adversos.
É urgente insistir na diplomacia e refundar as estruturas de um verdadeiro multilateralismo, capaz de atender aos clamores de uma humanidade que teme pelo seu futuro. Apenas assim deixaremos de assistir, passivos, ao aumento da desigualdade, à insensatez das guerras e à própria destruição de nosso planeta.
Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República do Brasil