A desdolarização será com uma nova moeda internacional, ou não será!
A dependência quase que exclusiva do dólar americano para a efetivação de processos comerciais e econômicos internacionais deixou de ser benéfica para as economias nacionais e passou, com o transcorrer dos anos, a ser mais um elemento de sustentação da hegemonia imperialista dos Estados Unidos da América. A intensificação do uso da moeda americana como arma de guerra e coação unilateral acendeu o alerta na comunidade internacional que passou a buscar alternativas para diminuir o nível de dominância e de influência direta e indireta que o dólar exerce na economia global.
No âmbito desse debate despontam iniciativas e atores que buscam acelerar a desdolarização da economia internacional, bem como aqueles que almejam garantir a manutenção do atual sistema monetário internacional (SMI). De um lado, por exemplo, o BRICS que, em 2014 na cúpula de Fortaleza, anunciou as primeiras medidas para a superação do dólar como moeda hegemônica da arquitetura financeira mundial. De outro, o país emissor da referida moeda que, independentemente de democratas ou republicanos no poder, entende que o dólar tal qual como ele é, é fundamental para manter os EUA como chefe supremo do sistema vigente de governança global.
Crescem, portanto, a insatisfação e a desconfiança da comunidade internacional com a utilização do dólar como arma na mesma proporção que os governantes estadunidenses ampliam o uso da moeda como instrumento facilitador de seus objetivos geopolíticos e geoeconômicos a partir de sanções unilaterais.
Ao mesmo tempo surgem novos elementos na infraestrutura financeira internacional objetivando dirimir a dependência do dólar nos processos comerciais e econômicos. Os acordos bilaterais de comércio em moedas nacionais entre Brasil-China, Venezuela-Irã, Rússia-Índia e também iniciativas multilaterais como o SML do Mercosul e o sistema da União Econômica Eurasiática, diminuem em maior ou menor grau a utilização do dólar entre si.
Contudo, esses novos elementos continuam insuficientes para eliminar por completo a pressão do dólar nas economias nacionais. E isso acontece porque faltam surgir outros elementos da nova arquitetura financeira internacional, dentre estes, a ascensão ou a criação de uma nova moeda global de referência e reserva.
A partir daqui, é claro, é possível se iniciar uma profunda discussão teórica, sob a égide das ciências econômicas e políticas, a respeito do caráter hierarquizado do SMI, sobre a viabilidade, aceitabilidade e lastreamento dessa nova moeda, sobre as reais possibilidades de serem feitos novos arranjos geopolíticos com essa finalidade, sobre o acirramento das tensões geopolíticas que esse cenário impõe e etc.
O objetivo desta breve contribuição para o 16º Congresso do Partido Comunista do Brasil é, no entanto, discutir o papel dos comunistas nesse processo de reorganização dos mecanismos de governança global, especificamente no que diz respeito à arquitetura financeira do mundo multipolar. Tanto a pauta estratégica de desdolarização, como o artifício tático que é a criação de uma nova moeda de referência para esse novo ecossistema.
Tenho presenciado com certa frequência interlocutores do campo progressista afirmarem que não é necessária a criação de uma nova moeda para que seja bem sucedida a desdolarização. Afirmam que fortalecer os mecanismos de intercâmbio utilizando moedas nacionais seria suficiente. Bem, seria precipitado da minha parte dizer que essa tese está totalmente equivocada. Contudo, diante da materialidade histórica dos fatos relacionados às transições geopolíticas e do papel atual que o dólar americano exerce na economia mundial, seria otimista demais se eu simplesmente me somasse a esses companheiros e companheiras nessa afirmação.
Afinal, o caráter imperialista do dólar americano não se manifesta apenas no cenário internacional, mas também se impõe com força frente às economias nacionais. Nossos vizinhos Equador, Argentina e Venezuela, por exemplo, veem sua soberania monetária ser extinta ou parcialmente neutralizada pelo avanço da presença do dólar no dia a dia da população.
E como é possível que o dólar americano se torne a moeda oficial de um país como o Equador? Ou mesmo o carro-chefe da campanha presidencial vencedora de um país como a Argentina? Entre fatores políticos e econômicos que podem embasar as respostas dessas perguntas, gostaria de destacar o fator cultural e a mística que envolve o dólar americano no imaginário popular.
E é primariamente esse fator cultural de costume e conforto que repele empresários de utilizar sistemas alternativos de pagamentos em moedas nacionais mesmo que seja mais vantajoso e lucrativo. Tão longo e massivo é o domínio do dólar, que os dogmas e as “velhas opiniões formadas sobre tudo” acabam atrasando a consolidação de iniciativas benéficas para as relações econômicas internacionais.
Algo comparável com o sentimento que a eletrificação dos automóveis causa nos amantes dos carros à combustão. Por mais que os carros elétricos sejam mais modernos, confortáveis, econômicos e benéficos para o planeta, os carros à combustão manterão fiéis seguidores, teimosos como uma mula no cabresto, que se recusarão ainda por um longo tempo a abrir mão de suas crenças quase religiosas sobre os automóveis do passado.
Esse aspecto cultural também influencia um aspecto econômico relacionado à liquidez das moedas nacionais. Ou seja, onde eu posso gastar essas moedas. O dólar, pode ser gasto em qualquer lugar do mundo, pode ser trocado por qualquer outra moeda do planeta. Já a rúpia indiana ou o rand sul africano têm valor apenas na Índia e na África do Sul, respectivamente. A Rússia enfrenta um dilema de acúmulo excessivo de rúpias que são ou reinvestidas em projetos russos na própria Índia, ou trocadas por ouro nas refinarias de Dubai com depreciação de até 30% do valor total inicial daquelas rúpias.
Então, tal qual o carro a combustão que só passou a ser efetivamente superado a partir da criação de um substituto viável de mesmo tipo, ou seja, o carro elétrico, a moeda dólar americano também precisa contar com uma alternativa de mesmo tipo, ou seja, a criação de uma nova moeda de referência e reserva.
E é curioso quando defendemos abertamente a criação de uma nova moeda. De cara, parece uma ideia distante, complexa e inatingível. A reação dos economistas conservadores é arrogante e de desdém, costumam dizer que isso seria querer reinventar a roda. Ou que é simplesmente inconcebível a criação de uma nova moeda na atual conjuntura.
Ora, não é necessário ir muito além para entender que essas teses conservadoras não se sustentam: há pouco mais de 15 anos surgiram, da noite para o dia, centenas de novas moedas no mundo, ou melhor, criptomoedas. E o que tornou essas moedas ativos viáveis e, até certo ponto, confiáveis? O próprio dólar! Assim que foi possível trocar essas criptomoedas por dólares americanos, o mercado cripto passou de uma aposta, para mais um ativo da especulação rentista do financismo mundial.
Tenho pra mim que a própria relação bitcoin – dólar americano justifica a necessidade de que o mundo tenha uma nova moeda internacional de referência e reserva.
Certamente se trata de um tema muito complexo, que deve ser debatido com uma profundidade que não cabe apenas em 8 mil caracteres.
Mas, diante do exposto, é fundamental que os comunistas tenham a clareza do que significa a desdolarização da economia mundial, de que se trata da neutralização de um dos pilares fundamentais do imperialismo ocidental e de que é sim necessário e viável discutir uma nova moeda internacional para que se tenha efetivamente em todos os âmbitos da arquitetura financeira mundial uma alternativa ao dólar americano e seus sistemas correlatos.
Henrique Domingues é membro do Comitê Municipal do PCdoB em Guarulhos