Manuel Bandeira tinha a idade de Cristo quando publicou, em1919, seu segundo livro de poemas, Carnaval. Homem maduro, vindo de dolorosa experiência da tuberculose que acometia gerações e gerações nascidas no século 19, o poeta produziu, com esse livro, obra de transição entre o decadentismo simbolista, que havia anos praticava, e o modernismo, cujo programa anunciou e desenvolveu como poucos.

Em 1917, ele aos 31 anos, saíra seu primeiro livro, A Cinza das Horas, todo vazado na chave simbolista. É dele o famoso Desencanto, escrito em 1912:

Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente. . .
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

A morte, mote já na estreia, será motivo de muitos versos, mesmo quando, de mala e bagagens, o poeta embarca inteiro na nave modernista, plenamente cifrada no livro seguinte, O Ritmo Dissoluto, de 1924. E a vida, outro leitmotiv de sua obra, aparecerá, ora como torvelinho louco a ser consumido de emborco, num vira-vira-virou alucinado, ora como o mais pungente, sublime, alumbrado e lírico êxtase carnal, ora com a sapientíssima e filosófica parcimônia epicurista de quem viveu mais do que lhe era dado.

Esses dois polos – vida e morte, Eros e Tânatos – darão, em sua obra, o compasso de outras polarizações antitéticas: corpos que se entendem e almas que se desentendem; matéria livre e espírito tirano; o prosaico e o sublime; o chão e o etéreo; o claro e o obscuro; o transcendente e o cotidiano; o comum e o insólito; etc. e etc.

Carnaval dá notícias dessas pugnas dialéticas: começa por abrir com uma Epígrafe, espécie de dedicatória a uma foliã, cuja fantasia, em frangalhos, é síntese de vida e morte, e que assim termina:

– Tu és a minha esperança de felicidade e cada dia que passa eu te quero mais, com perdida volúpia, com desesperação e angústia

Segue a alucinação nos poemas Bacanal e Os Sapos – o primeiro, escatológico; o segundo, sarcástico.

Em Bacanal, o poeta louva os excessos num baile de carnaval, como um tísico febril que, certo da morte, quer sorver, “no esto brutal das bebedeiras”, a vida curta que lhe resta. Já Os Sapos é um grito de guerra modernista contra o parnaso de Oliveiras, Correias e Bilacs, que primavam em martelar versos e comer hiatos, reduzindo a poesia à “fôrma” das artes poéticas e dos manuais de metrificação.

Ocorre que, em seguida, Bandeira enfileira uma sequência de versos simbolistas lacrimosos, decadentistas, eivados dos lugares comuns de uma poética já exaurida. Há, dentre eles, no entanto, peças que brilham, como o soneto Menipo, de 1907:

Menipo, o zombeteiro, o Cínico vadio,
Ia fazer, enfim, a última viagem.
Mas ia sem temor, calmo, atento à paisagem
Que se desenrolava à beira do atro rio.

E chasqueava a sorrir sobre o Estige sombrio.
Nem cuidara em trazer o óbulo da passagem!
Em face de Caronte, a pavorosa imagem
Do barqueiro da Morte olhava em desafio.

Outros erguiam no ar suplicemente as palmas.
Ele, avesso ao terror daquelas pobres almas,
Antes afigurava um deus sereno e forte.

Em seu lábio cansado um sorriso luzia.
E era o sorriso eterno e sutil da ironia,
Que triunfara da vida e triunfava da morte.

Poemas como este dão conta de um virtuose na arte de versejar, que atingiu alto domínio técnico. Esse conhecimento de Bandeira será base poderosa para o manejo revolucionário do verso livre em suas obras posteriores.

Na derradeira peça do livro, Epílogo, escreve o poeta, à guisa de fecho:

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando o acabei — a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade…
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura…
— O meu carnaval sem nenhuma alegria!…

De fato, o Carnaval de Bandeira não é um carnaval alegre: ora é corroído pela acidez dos desenganados, amargurados; ora é melancólico, à beira do depressivo. É, todavia, “um carnaval todo subjetivo”: uma… festa?… desigual, toda altos e baixos; poucos brilhos, muitas sombras e excesso de mosaicos baços – mas que dá, aqui e ali, uma pala do que virá. E o que veio, não há dúvidas, apesar da duvidosa alegria, carnavalizou para sempre a poesia de língua portuguesa.

(Edição: André Cintra)