O carnaval como visão da brasilidade: a utopia de Oswald de Andrade
O modernista brasileiro Oswald de Andrade (1890–1954), em seus poemas e manifestos, apresenta a ideia do carnaval como símbolo da brasilidade – e, mais do que isso, como alegoria de uma cultura utópica, na qual a alegria, a beleza, a sensualidade, a miscigenação e a igualdade social são os ingredientes principais de uma nova “feijoada” social.
“O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança”, escreve Oswald de Andrade no Manifesto Pau Brasil, publicado em 1924 no jornal Correio da Manhã.
Nesse texto, o poeta paulista apresentou a sua visão da brasilidade, recuperando elementos de nossa história colonial, geografia, culinária, danças populares e outros elementos para definir não apenas os traços de uma identidade nacional – mas também as bases de uma cultura utópica, que ele desenvolverá, mais tarde, no Manifesto Antropófago e na tese sobre o Matriarcado.
O poeta pensava em um conceito de “nacional” que se opunha ao colonialismo cultural da época, que submetia nossa literatura e artes a modelos estrangeiros, mas, ao mesmo tempo, não adotava uma postura excludente, xenofóbica, bem ao contrário: Oswald de Andrade propunha a “devoração crítica” de tudo o que houvesse de interessante em outras culturas, que seria assimilado, transformado e depois convertido em artigos de exportação – ele define a própria poesia pau brasil como “poesia de exportação”.
Seu conceito de brasilidade valoriza justamente a miscigenação, ao contrário dos nacionalismos de direita da época, como o fascismo alemão, que defendiam a ideia de uma “raça pura” e da hegemonia de uma nação sobre outras. Dentro dessa visão mais abrangente de identidade nacional, Oswald de Andrade via no Carnaval uma síntese de nossa cultura, em diálogo constante com outras culturas.
Esse pensamento será retomado e desenvolvido no Manifesto Antropófago, publicado em 1928 na Revista de Antropofagia, texto que reivindica uma “Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. (…) Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. (…) Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade do ouro. Catiti Catiti Imará Notiá Notiá Imará Ipeju (…). A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. (…) Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.
Essas ideias, que assimilavam conceitos de Rousseau, do marxismo, da psicanálise, ingeridos e transformados na digestão antropofágica, recordam ainda o conceito de carnavalização, apresentado pelo filósofo e crítico literário russo Mikhail Bakhtin em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Para ele, carnavalização é um processo cultural que subverte as hierarquias sociais e as normas culturais, criando um espaço de liberdade e criatividade.
Isso acontece pela inversão de hierarquias, permitindo que os oprimidos sejam os protagonistas, pela mistura de culturas, criando algo miscigenado ou híbrido, e pela subversão das normas sociais, culturais ou religiosas pelo deboche. A ironia, o humor, o sarcasmo, são elementos imprescindíveis no processo de carnavalização.
O livro de Bakhtin, escrito em 1930, foi publicado apenas em 1965 – portanto, décadas após Oswald de Andrade ter escrito os seus poemas, manifestos e romances; apesar de não ter havido diálogo direto entre eles, reconhecemos facilmente a ideia bakhtiniana de carnavalização em algumas das principais obras literárias de nosso Modernismo.
É o caso o livro de poemas Pau Brasil e os romances Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, do próprio Oswald de Andrade, no Macunaíma, de Mário de Andrade, em Cobra Norato, de Raul Bopp e na pintura de Tarsila do Amaral, que também foi companheira de Oswald de Andrade e ilustrou dois poemas do “antropófago de cadillac” sobre o Carnaval, que apresentamos abaixo:
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NOSSA SENHORA DOS CORDÕES
Evoé
Protetora do Carnaval em Botafogo
Mãe do rancho vitorioso
Nas pugnas de Momo
Auxiliadora dos artísticos trabalhos
Do barracão
Patrona do livro de ouro
Protege nosso querido artista Pedrinho
Como o chamamos na intimidade
Para que o brilhante cortejo
Que vamos sobremeter à apreciação
Do culto povo carioca
E da Imprensa Brasileira
Acérrima defensora da Verdade e da Razão
Seja o mais luxuoso novo e original
E tenha o veredictum unânime
No grande prélio
Que dentro de poucas horas
Se travará entre as hostes aguerridas
Do Riso e da Loucura
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NA AVENIDA
A banda de clarins
Anuncia com os seus clangorosos sons
A aproximação do impetuoso cortejo
A comissão de frente
Composta
De distintos cavaleiros da boa sociedade
Rigorosamente trajados
E montando fogosos corcéis
Pede licença de chapéu na mão
20 crianças representando de vespas
Constituem a guarda de honra
Da Porta-Estandarte
Que é precedida de 20 damas
Fantasiadas de pavão
Quando 40 homens do coro
Conduzindo palmas
E artisticamente fantasiados de papoulas
Abrem a Alegoria
Do Palácio Floral
Entre luzes elétricas
(André Cintra)